sexta-feira, 3 de abril de 2020

TEM GENTE QUE GOSTA DE SOFRER?


O escritor Dostoievski observou, no seu genial conto “O Subsolo” - onde realiza uma profunda imersão nos subterrâneos da mente humana –, o seguinte: “É possível verdadeiramente sentir ainda algum respeito por si mesmo, aquele que se dedicou à descobrir uma certa volúpia na consciência de sua própria humilhação?”
Todos nós conhecemos fumantes, drogaditos, adeptos de autoflagelação, fanáticos do ódio ou dos filmes de terror, amantes que se submetem a humilhações e agressões d@ companheir@, pessoas que agem de forma insensata e danosa contra si mesmos, enfim, um amplo espectro de comportamentos incompreensíveis, os quais, freqüentemente, levam à afirmações do tipo: “Ela gosta de apanhar”; “Ele gosta de sofrer”, etc. Até que ponto essa psicologia do senso comum tem algum fundamento?
No intuito de lançar alguma luz sobre essa questão, apresentaremos, liminarmente, a seguinte hipótese paradoxal: as pessoas sofrem para não sofrer. Em outras palavras, ninguém gosta de sofrer. A opção pelo sofrimento é um mal menor a fim de evitar uma dor maior.
Tentaremos esclarecer esse paradoxo discutindo alguns pontos.
Primeiro: O CAMPO DE DOR.
Nós vivemos imersos em campos de energia os mais diversos – elétrica, magnética, gravitacional, luminosa, etc. O sofrimento também emite uma determinada freqüência vibratória. Assim, ao nascermos em determinada família, somos bombardeados por informações e vibrações oriundas das pessoas ao redor: pais, irmãos, parentes, etc. Se os familiares sintonizam diariamente na energia do sofrimento, através de discussões, agressões, maus tratos, comportamentos destrutivos, etc, inevitavelmente isso nos afetará de alguma forma. Algumas pessoas mais sensíveis e empáticas – tipo esponja que tudo absorve -, podem tornar-se o “bode expiatório” de todos, uma espécie de ralo através do qual a negatividade escoa... Os familiares, desta forma, ao perceberem essa tendência “voluntária” ao sacrifício de um, passam a culpá-lo por tudo de ruim que acontece. Protegem-se assim de suas tendências destrutivas, lançando-as sobre o outro que assume o lugar de vítima.
Por outro lado, o “cordeiro”, que se oferece em sacrifício para salvar os pecados e mazelas da família, sente o quanto é importante para a estabilidade da família e, por “amor”, se doa aos demais... Essa é a sua forma precária de sentir-se importante e aceito no seio familiar.
Esta tendência à integração pelo sofrimento explica muitos comportamentos onde, claramente, o indivíduo revive e repete atitudes dos outros: o filho suicida-se aos 45 anos, mesma idade em que o pai tirou a própria vida; a mãe morre de câncer no seio e, anos depois, a filha é vitimada pela mesma doença; o pai definha e falece de cirrose hepática em decorrência do alcoolismo, o filho segue o mesmo caminho, etc.
Em suma: quando nos identificamos com alguém, passamos a vibrar na mesma faixa energética. “O semelhante produz o semelhante”, reza uma antiga lei da magia. Assim, sentimos uma tendência natural de nos aproximarmos dos nossos iguais. Isso ocorre tanto no plano visível quanto no invisível: nossos sentimentos atraem “amiguinhos” espirituais que estão vibrando nessa mesma faixa e irão reforçar ou intensificar essas nossas tendências, tanto para o bem quanto para o mal.
2) Segundo: O BEM DO MAL.
Todo comportamento aparentemente destrutivo traz em si, pelo menos em germe, um componente construtivo. Lúcifer, como o nome indica, era um ser de luz que decaiu. Os criminosos, no fundo, são seres que tiveram sua criatividade abortada e dão vazão ao seu impulso reprimido de produzir algo de novo destruindo ou matando suas vítimas. As pessoas cometem o mal porque sofrem. Cada um dá o que tem. Quem é feliz, espalha amor e alegria. Quem é infeliz, distribui sofrimento, tristeza e dor.
Por outro lado, as pessoas que adotam comportamentos auto-agressivos ou que as induzem ao sofrimento, estão estrategicamente se protegendo de um mal maior. Há sempre uma gratificação no sofrimento, ou, em outras palavras, há sempre algo de bom num mal que alguém pratica contra si mesmo. Por exemplo: a mãe que dedica todos os seus esforços no sentido de manter a casa impecavelmente limpa, brigando com o marido e os filhos quando eles sujam alguma coisa, no fundo está se protegendo de uma sensação de culpa, mácula ou pecado inconscientes. O homem que se esmera em criar conflito com todos ao seu redor, e só se aquieta e satisfaz quando vê o circo pega fogo, visa desviar a sua atenção e proteger-se da conflagração interna de forças que o atormentam sem parar. Quanto maior a guerra externa, menos percebe os conflitos internos.
Terceiro: A EROTIZAÇÃO DO SOFRIMENTO.
A criatividade do ser humano é prodigiosa e ilimitada. Desde os primórdios da civilização nossos antepassados sentiram a inclinação de adornar o ambiente em que viviam, seja decorando as suas casas ou tornando atraentes os seus utensílios, seja embelezando os seus próprios corpos com adereços e enfeites.
Aprendemos a tornar aprazível tanto o ambiente externo quanto nossos próprios sentimentos e emoções. Um filho, assistindo diariamente o seu pai, descontrolado e furioso, surrar injustamente os seus irmãozinhos, pode – por um mecanismos de proteção – identificar-se com o pai agressor, e não com os irmãos que são agredidos, sentindo prazer toda vez que presencia uma agressão. Temos então a gênese de um sadismo: a dor do outro é erotizada, e a pessoa passa sentir prazer ao infringir sofrimento ao outro. No fundo, o outro substitui a própria pessoa. E, ao fazê-lo sofrer, evita nesta projeção se autodestruir.
Edgar Allan Poe perdeu os pais muito cedo e viu sua amada prima morrer em seus braços quando ainda era adolescente. A presença sinistra da morte sempre foi uma constante em sua vida. Assim, para lidar com um mundo tão hostil e pavoroso, criou o gênero literário do terror. Ao discorrer em seus contos, com uma argúcia e profundidade notáveis, acerca dos suplícios, medos e sofrimentos que afligem a humanidade, realiza a proeza da estetização do terror. O medo deixa de ser algo pavoroso e torna-se um objeto artístico, fonte de deleite e prazer.
Há sempre algo de positivo em atitudes aparentemente sem sentido ou destrutivas. Usando de intuição e da criatividade, é sempre possível ressignificar e transmutar comportamentos (auto)destrutivos, usando-os como adubo e ponto de partida de realizações sublimes.
O simbolismo da flor de lótus é, a esse respeito, reveladora: representa um ser que nasce nas trevas lamacentas e putrefatas do fundo dos rios, mas que cresce, emergindo das águas turvas, para finalmente produzir um botão, o qual logo se abre num espetáculo de beleza e perfume inebriantes. O botão é o coração fechado na dor. A flor é a abertura do coração em intercâmbio dadivoso com a vida. Que aprendamos com a flor de lótus a capacidade de superação e a beleza e perfume que suas pétalas exalam. O lótus é por isso divinizado do Mediterrâneo e do Nilo ao Ganges.
José Ramos Coelho – 13/08/2019

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