sexta-feira, 3 de abril de 2020

O CORONAVÍRUS E A MORTE DA CULTURA

“Existimos. A que será que se destina?” Nascer, crescer, reproduzir e morrer – esse processo natural da vida só se realiza caso o indivíduo desfrute de uma boa saúde. E o que é a saúde?

Podemos defini-la como a capacidade de manter-se em homeostase de forma autônoma e auto-suficiente. Esta capacidade se recicla e consolida através de situações que a põem à prova. Por exemplo: uma criança criada num ambiente de perfeita assepsia possui um sistema imune extremamente debilitado e vulnerável, pois ele só produz anticorpos na presença de agentes patogênicos que o ameaçam. Um atleta só desenvolve sua performance em treinos que testam os seus limites de força e resistência e o faz superá-los.

De modo semelhante ao ocorrido com o indivíduo, a cultura é também um grande sistema homeostático cuja função é fornecer um suporte simbólico para orientá-lo e dar um sentido à sua existência. A cultura é o que une e integra a sociedade numa totalidade única e auto-regulada.

Conforme teorizamos em “A Morte da Cultura”, ocorreram rupturas ao longo da história humana, as quais conduziram a humanidade a viver numa sociedade que se alimenta da insatisfação e da exploração de seus membros. Essas rupturas produzem um malestar difuso desagregador e desestabilizador do sistema. Vejamos alguns exemplos ilustrativos dessa tese:

- Um jogo virtual, o Baleia Azul, induziu milhares de jovens ao suicídio. Qual a razão de alguém ser atraído a se mutilar ou privar-se de sua própria vida?

- Os pais, no afã de sucesso profissional e “qualidade de vida”, ausentam-se da família e dos filhos, os quais, sentindo-se abandonados, perdem a vontade de viver;

- 30% das mortes ocorridas nos hospitais são decorrentes do próprio tratamento médico (iatrogenia) - o que mostra que a medicina não está a serviço da saúde das pessoas, mas do lucro das indústrias farmacêuticas.

- Enquanto de um lado as indústrias alimentícias adoecem as pessoas, produzindo alimentos processados, açucarados, repletos de aditivos e conservantes, de outro as indústrias farmacêuticas tratam os doentes com medicamentos que não curam e produzem efeitos colaterais, levando-os à dependência e complicações. As primeiras adoecem os indivíduos e as segundas os tratam. Não surpreende que essas duas indústrias tenham vindo a se fundir numa só, visando a maximização dos seus lucros

- Todos os países, dominados seja por governos de direita ou de esquerda, sonham em aumentar o PIB – Produto Interno Bruto. Mas o PIB é apenas a soma aritmética das transações entre humanos. No seu cálculo, não se leva em conta a devastação ambiental que está na base da economia. Assim, embora tenha efeitos catastróficos sobre o PIB, a pandemia de coronavírus também contribui para aumentá-lo, já que as pessoas se verão compelidas a adquirir remédios, vacinas, gastar com médicos, psiquiatras, psicólogos, funerária... Tudo isso é computado como “criação de riqueza”. Ou seja, o PIB é mais um indicador de autodestruição do que de progresso real.

- A eleição do neo nazista Bolsonero, viabilizada pela operação Lava-Jato - que destruiu a infra-estrutura nacional e criminalizou a política - e o impedimento da candidatura de Lula, descumprindo determinação da ONU, teve por símbolo uma arminha, expressão eloqüente de uma elite que odeia o povo e o despreza;

- Nazistas saem às ruas comemorando a pandemia de coronavírus na Alemanha.

Todos esses eventos, embora bem distintos entre si, são expressões claras de rupturas e conflitos. Para entendê-los numa perspectiva mais ampla, convém ter em mente que tudo o que se afirma pela negação do outro cria, pela própria natureza da negação, um desequilíbrio que só terá solução de continuidade pela negação da primeira afirmação e o restabelecimento da harmonia original.

Assim, por exemplo, uma sociedade que se afirma pela destruição do meio ambiente encontrará sustentabilidade pela cessação de sua atividade predatória. O nazismo, sonhando com o III Reich e o domínio imperial do mundo - pregando o extermínio dos gays, ciganos, comunistas e judeus - atraiu contra si uma coalizão de países na Segunda Guerra que o levaram à completa ruína. Pais que priorizam a aquisição de dinheiro em detrimento da convivência com a família gerarão filhos infelizes e (auto)destrutivos. Uma medicina que se coloca a serviço do capital e não da saúde das pessoas se condena ao descrédito e se torna um instrumento da erosão do sistema.

A insatisfação difusa e o malestar da cultura encontram na necropolítica a sua expressão mais acabada e precisa: ela é o escoadouro e corolário das rupturas e contradições existentes no seio da própria sociedade e, ao mesmo tempo, um mecanismo auto-regulatório catastrófico do sistema.

A necropolítica produz, pela sua própria lógica interna, a erosão e morte da cultura.

Nesse contexto conturbado e conflituoso, a pandemia de coronavírus acelerou vertiginosamente esse processo de destruição do sistema e destituiu a necropolítica de suas pretensões apocalípticas. A similaridade da atividade do vírus com os necropolíticos explica a simpatia existente entre eles. A necropolítica foi vencida pela micronecrose.

Estamos às portas do advento de uma pós-cultura.

José Ramos Coelho - 30/03/2020

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