sexta-feira, 3 de abril de 2020

É BOM TER AUTO-ESTIMA?

É BOM TER AUTO-ESTIMA?
Um dos conceitos mais festejados no campo da psicologia é a auto-estima. Todos são unânimes em destacar os seus benefícios, acentuando também os malefícios de sua ausência na vida das pessoas. Até que ponto isso é verdade?
Aqui pretendemos contextualizar essa problemática à luz das tradições sapienciais. E começaremos por esclarecer o conceito. Afinal, em que consiste a auto-estima?
Ela, basicamente, depende de três aspectos: amor de si mesmo, visão de si mesmo e autoconfiança. Analisemos as características de cada um deles.
Amor de si mesmo: Este é o componente mais importante. Amamo-nos por nos sabemos dignos de amor e de respeito, apesar de nossos defeitos e limitações. Esse capital de amor nos permite resistir à adversidade e nos recompor após um fracasso. Depende essencialmente do amor que recebemos da família na infância.
Visão de si mesmo: É o olhar que se lança a si mesmo, a avaliação feita das próprias qualidades e defeitos. As pessoas com baixa auto-estima têm um olhar duro e até cruel sobre si, exagerando os defeitos e minimizando as qualidades. A pessoa com alta auto-estima minimiza os defeitos e é generosa com as qualidades. Devemos esse modo de ver ao nosso círculo familiar e, especialmente, aos projetos que nossos pais idealizaram para nós. Os filhos são encarregados inconscientemente pelos pais de realizar o que eles não conseguiram em suas vidas.
Se eu digo para alguém com baixa auto-estima: “Eu gosto de você”, ele não acreditará ou irá supor que estou tentando iludi-lo por algum motivo oculto. Por outro lado, se eu lhe disser: “Você é uma pessoa desagradável”, o efeito será devastador e ela ficará arrasada. A razão é que esta segunda afirmação coincide com a imagem que ela faz de si mesma.
Autoconfiança: Aplica-se aos nossos atos. Estar confiante é pensar ser capaz de agir de maneira adequada nas situações desafiadoras. A autoconfiança pode parecer menos fundamental que o amor a si mesmo ou a visão de si mesmo, dos quais ela seria uma conseqüência. Em parte isso é verdadeiro, mas seu papel nos parece fundamental na medida em que a auto-estima precisa de atos para se manter ou desenvolver-se: pequenos êxitos no cotidiano são necessários ao nosso equilíbrio psicológico, da mesma forma que a alimentação e o oxigênio são necessários ao nosso equilíbrio corporal. A autoconfiança retroalimenta a visão de si e o amor a si mesmo, e resulta da maneira como fomos educados na escola e na família.
Certamente, uma pessoa com baixa auto-estima se depara com dificuldades bem maiores em sair-se bem na vida. Por não acreditar em sua própria capacidade, muitas vezes perde oportunidades, deixando-se levar pelo medo do fracasso. Muitas vezes deixa até de tentar lutar por um objetivo que para ela é importante, simplesmente por temor de um eventual insucesso. Nos relacionamentos, freqüentemente vive situações abusivas sem reclamar ou pedir ajuda, por julgar merecê-las. E atormenta-se intimamente pelas recriminações que faz a si mesma por qualquer ninharia, esquecendo muitas vezes todas as suas realizações.
Por outro lado, uma pessoa com elevada auto-estima torna-se freqüentemente intragável. Por acreditar muito em si mesma, torna-se arrogante e soberba, achando que sabe mais e é melhor do que os outros. Esse seu comportamento dificulta os relacionamentos, pois ela sente dificuldades em escutar os outros, pois sua opinião é sempre mais importante que a deles. Como sua autoconfiança é exagerada, deixa de ouvir a opinião e conselhos dos outros e é levada a fazer asneiras ou a agir temerariamente. Esse comportamento soberbo, por sinal, não é propriamente o efeito de um amor excessivo de si, mas sim um mecanismo compensatório ao medo de estabelecer vínculos com os outros. Essas características patenteiam o quanto a auto-estima tem ligação direta com o culto do ego.
A FELICIDADE MUNDANA
Vivemos numa sociedade essencialmente ególatra, individualista e narcisista. O capitalismo reinante no sistema econômico, fundado no entrechoque de interesses particulares no livre mercado, é a transposição, ao plano social, do fortuito embate dos egos individuais.
Dispor de auto-estima nesse mundo onde todos concorrem contra todos é, sem dúvida, uma vantagem. No entanto, em função da auto-estima estar centrada no ego, o seu culto nos torna prisioneiros do mundo exterior.
Com efeito, o ego vive atado a apegos e aversões. Tenta aproximar-se daquilo que lhe dá prazer e satisfação, e fugir daquilo que rejeita. Com isso, incomoda-se com aquilo que não gosta, e atormenta-se pela perda ou o temor de lhe escapar aquilo que aprecia.
E como o mundo está em constante movimento, quem está empregado pode vir a ser demitido; quem ama corre o risco de perder o seu amor, seja por abandono ou morte – e esses eventos porem abalar seriamente e minar a auto-estima. Quantas pessoas, aparentemente felizes, entram em profunda depressão pela perda de um ente querido? É certo que a auto-estima, numa certa medida, ajuda a lidar com essas situações traumáticas. Entretanto, por estar ligada às condições do mundo exterior, torna-se vulnerável aos eventos adversos.
A FELICIDADE PERENE
No contexto das tradições sapienciais, cujo ensino é focado no cultivo de valores espirituais, o conceito de auto-estima perde todo o seu sentido. De fato, se a felicidade mundana gira ao redor da primazia do ego, em sua relação com o ambiente e os outros, a felicidade perene descola-se desses valores e prega a subjugação do ego ou, mesmo, a sua eliminação.
Pois o ego não é apenas o cativeiro que nos prende a um mundo transitório e incerto: ele é uma fonte incessante de angústia, incertezas e sofrimento. Sofremos quando nos sentimos sós e sem um amor. E, se temos um amor, nos desesperamos ao pensar em perdê-lo. Se estamos vivos, sabemos que, um dia, a morte virá nos levar. Nada perdura. Tudo passa...
Além do mais, o ego é uma mera construção coletiva, um feixe de lembranças e desejos, atado por um nome. O que constitui o nosso senso de identidade são as lembranças de nossa história pessoal pregressa, e os anseios que alimentamos – tudo girando em torno do nosso nome. O paradoxo da nomeação é que tanto ela nos circunscreve e nos localiza no tecido social, quanto nos isola. O eu (ou o ego) nos opõe aos outros. Caímos num mundo artificial de separatividade. Contudo, o núcleo de verdade do ego, que é a consciência, o transcende.
A construção do ego pode comparada à grilagem de uma área numa terra virgem. Ao chegar num local desabitado, posso erguer uma cerca e decretar: essa terra é minha, ela me pertence. A cerca (como o nome), artificialmente separa e opõe o que está dentro e o que está fora dela. Ela altera a ordem natural das coisas, impedindo o livre trânsito dos seres que habitam no lugar. É um ato de usurpação e colonização.
Da mesma forma, quando identifico a consciência ao ego, cometo um imenso equívoco: da mesma forma que o terreno só existe graças à terra onde se encontra, a consciência é um campo universal que permeia e dá sustentáculo aos múltiplos egos individuais.
Nesta conformidade, o caminho da felicidade perene – na visão das tradições sapienciais – consiste num processo iniciático de libertação da ignorância que nos ata a apegos e aversões, e a busca da verdadeira realidade que está além do ego, que ultrapassa o egoísmo e os interesses mundanos, e nos conduz à bem aventurança, à serenidade e à paz espiritual.
Evidentemente, nessa visão transcendental da felicidade, o conceito de auto-estima perde todo o seu sentido, da mesma forma que um título de posse, obtido através da grilagem de terras, em relação ao equilíbrio ambiental.
Nessa perspectiva mais ampla, o bem-viver tem muito mais a ver com autoconhecimento, amor à verdade, simplicidade, compaixão e serviço.
José Ramos Coelho – 14/08/2019.

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