LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?
A lucidez de uma pessoa é
inversamente proporcional ao grau de condescendência que ela tem consigo mesma.
Em outras palavras, a sua reserva de lucidez é diretamente proporcional à
intensidade de contrariedade que ela cotidianamente impõe a si mesma.
Essa é uma questão crucial. Talvez o
tema mais importante para alguém que deseje realmente tornar-se um ser livre e
racional.
Voltemos então a repeti-lo: o nível
de consciência de uma pessoa depende de quão constantemente ela se põe à prova,
se questiona, duvida dos seus valores ou crenças e testa os seus limites.
É preciso reconhecê-lo: atingir algum
grau de lucidez não é nada fácil. Alcançá-la exige desapego, ousadia, coragem e
uma boa dose de esperança.
Desapego – de todos os hábitos
arraigados. Ousadia – em experimentar algo inteiramente novo. Coragem – em
saltar no abismo do desconhecido, abandonando o solo firme do já consolidado,
do assimilado, do mundinho familiar. E esperança em acreditar que é possível
sair do cativeiro.
Em suas Meditações Metafísicas, o
filósofo Descartes, um dos maiores gênios da humanidade, faz uma proposta
altamente audaciosa: que colocássemos em dúvida todos os nossos conhecimentos
anteriores, submetendo-os a uma dúvida metódica a fim de verificar, após esse
processo exaustivo de auto inquirição, o que existe de verdadeiro ou falso
naquilo que aceitamos. Quem teria a coragem e determinação para um
empreendimento dessa magnitude?
Talvez esse seja o desafio mais
difícil e inquietante a que um ser humano possa se dedicar. É por isso que, em
sua imensa maioria, as pessoas encontram-se num processo de completo estupor,
ou seja, vivem como meros autômatos, seguem padrões pré-estabelecidos,
preconceitos, programas pré-fabricados, agindo como robôs. A sombra da
inconsciência as domina por completo. Enroladas no círculo vicioso das
repetições sem fim, elas vivem como Sísifo realizando o seu eterno castigo.
Não causa surpresa, portanto, o fato
de que muitas delas, mesmo quando desejam livrar-se dessa Roda de Samsara, não
o conseguem. Acabam voltando ao mesmo ponto: seja o desejo de não cometer os
mesmos erros de sempre, de seguir a dieta tão sonhada, de realizar tudo aquilo
que sabe perfeitamente ser benéfico para si... e não o conseguem. A força da
inércia é maior do que elas mesmas.
Como um ser que não tem mais controle
sobre si mesmo, pode considerar-se um ser racional, um “homo sapiens”? Com
muito mais razão, dever-se-ia defini-lo como um “homo demens”, um ser cujo
sintoma mais característico é a perda de sua liberdade e a renúncia à
autogestão de sua própria vida.
O terrível, o sinistro, o assustador
é constatar que somos o tempo todo condicionados a sermos peças de uma
engrenagem que se retroalimenta. E, ainda pior: muitos se vangloriam e se
comprazem com esse condicionamento em massa, dependendo do nível em que se
situa dentro dessa hierarquia de controle que os domina e à qual
voluntariamente servem.
Apesar de toda essa tendência
onipresente, é possível acender uma luz na escuridão. Está ao nosso alcance, em
cada instante de nossa vida, seguir a roda viva - ou não. Podemos fazer
diferente. Exercitar a divina arte de sermos únicos, originais, inconfundíveis.
Concluo com a profunda e penetrante
reflexão do grande Dostoiévski:
“Somos assim: sonhamos o voo, mas
tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do
vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da
liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas.
Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas
moram”.
José Ramos Coelho – 02 de agosto de
2020.