sábado, 30 de março de 2024

 O SENHOR ABSOLUTO


Dentre todos os sentimentos, um dos mais fortes, disruptivos e dominantes é o medo. Hegelianamente falando, o medo da morte é o Senhor Absoluto – a única força capaz de conter a ânsia por liberdade.
Com efeito, o medo da morte, segundo Schopenhauer, é a mãe das filosofias e religiões, pois todas buscam dar explicações para o flagelo da finitude.
Pois a morte é precisamente isso: um limite, um fim, um termo.
Vemo-la como algo externo, uma entidade sinistra que vem ao nosso encontro e nos ceifa a vida. Essa visão popular oculta e mascara uma realidade cotidiana: ela é o contorno do ser, a tampa que impede o transbordamento da garrafa.
Ela nos sonda a todo momento. Submetemo-nos a ela muito além de nossa compreensão.
Quando pressentimos em alguém um ímpeto de expressividade e fingimos não ver, abortamos no outro o que ficou por dizer.
Quando as crianças são impedidas de falar sob a alegação de nada saber, suas vozes são castradas.
Quando paramos e dizemos: “só vou até aqui!”, eliminamos o caminho que poderia ser trilhado.
Quando fazemos uma escolha, negamos outras.
Quando mato uma esperança, anulo um sonho.
Quando um encontro se realiza, vem a despedida.
Quando digo “não consigo”, escondo-me por atrás de uma impossibilidade a fim de não tentar.
A morte acompanha o ser a todo momento e o configura no que ele é ou deixa de ser.
Por outro lado, as mais exuberantes manifestações de vida correm no sentido oposto, arrostando todas as barreiras.
A flor que, pela manhã, desabrocha, abre suas pétalas e exala a sua fragrância em todas as direções, atraindo os polinizadores, é uma epifania exuberante da pujança da vida.
O fungo que espalha pelo ar milhões de esporos, visando perpetuar-se é um espetáculo grandioso de vida e adaptabilidade.
A mãe que arrosta todos os perigos e gera o seu desejado bebê, é uma eloquente manifestação de dedicação e amor.
A torrente de inspiração que invade a mente do artista e o impele a criar, é outro exemplo da riqueza inesgotável da vida.
Enquanto a morte é limite, contenção, encobrimento, a vida é manifestação, revelação, epifania.
O medo é inimigo mortal do coração, pois gera insegurança, encolhe e atrofia o ser.
Minha querida mãe tinha um amigo, o Padre Daniel, conceituado filósofo, poeta e teólogo. Quando ocorria dele encontrar-se lá em casa com o Padre Zé Maria, os dois se punham a brincar de pega, como se fossem gato e rato. Estranhíssimo.
Certo dia, o Pe. Daniel pediu uma penca de bananas para lanchar. À frente de todos, ele pegou uma banana, descascou-a, jogou fora a banana e passou a comer a casca. As pessoas, perplexas, não acreditavam no que viam. Ele pegou outra banana e repetiu o mesmo gesto. “Padre”, disse alguém, “o senhor está comendo a casca da banana...”. Candidamente, ele respondeu: “Sim. Tem mais vitaminas!”.
Um dia visitei-o em sua residência, a qual mais parecia um sebo antigo, com livros espalhados por todos os cantos da casa. Ao abrir o refrigerador, surpreendi-me ao encontrar lá dentro uns óculos. E o interpelei: “Padre, o senhor guarda os seus óculos no refrigerador?”
“Sim, meu filho. Eu sou quase cego, sabe? E quando perco os óculos, tenho que ficar tateando a casa inteira. Como refrigerador é um compartimento bem pequeno, eu o encontro lá com facilidade. Além do mais, num calor como o de Recife, é bom ter uns óculos geladinho!”
- O senhor é muito estranho!, disse-lhe eu, perplexo.
Ele deu uma grande risada e me respondeu: “Gosto que os outros pensem que sou louco. Assim eu posso fazer o que eu quero!”
Bingo! Finalmente compreendi o bizarro comportamento deste velho sábio.
De fato, é preciso ser muito louco para desejar ser normal.