sábado, 12 de maio de 2012


A Tragicomédia da Medicalização: A Psiquiatria e a Morte do Sujeito.

  
Resenha do livro:
A TRAGICOMÉDIA DA MEDICALIZAÇÃO:
a psiquiatria e a morte do sujeito.
 Autor: José Ramos Coelho. Ed. Sapiens, Natal 2012

As reflexões desenvolvidas nesta obra partiram da constatação, por parte do autor, de uma contradição flagrante entre os enunciados do discurso médico-psiquiátrico e as evidências clínicas colecionadas no atendimento a pacientes medicados. Ao perceber que pacientes usuários de psicofármacos apresentavam uma notória dificuldade em assumir o controle de suas vidas e reagir positivamente ao tratamento psicoterapêutico, e, ao contrário, pessoas sofrendo de graves conflitos em função de choques emocionais – morte de parentes próximos, ou separação, por exemplo – e que não haviam tomado psicoativos, rapidamente se refaziam e se libertavam do sofrimento, resolveu investigar acerca do tema da medicalização da existência.
Além da explicitação detalhada dos efeitos maléficos dos psicoativos nos processos de autoconhecimento e autotransformação das pessoas, o autor investe contra o que chama de “polematação” dos indivíduos: a transformação dos seres humanos em mercadorias, incentivada pelo discurso médico-psiquiátrico ao sustentar que os distúrbios mentais são resultantes de um “desequilíbrio químico” no cérebro – e não em função do estilo de vida, das escolhas, ações ou omissões adotadas ao longo da vida. O livro identifica dois níveis perniciosos de iatrogenia na intervenção médica: os que são decorrentes dos efeitos colaterais dos psicoativos e a “polematação” subjetiva dos indivíduos, que, tomados como meros pacientes, são reduzidos ao nível de coisas à espera de tratamento.
Para elaborar a sua crítica, Ramos satiriza o discurso médico, sustentando que o mesmo forjou uma nova pandemia – a “pathoneurose (pathos = emoção, sentimento, dor, sofrimento + neurose), a qual consiste basicamente em considerar como “doentes mentais” pessoas que sentem emoções intensas ou duradouras. Esta superabundância de vida é vista como uma anomalia pela ciência médica, uma desmesura, que deve ser tratada com a “medicamentose” - o retorno à normalidade, efeito disciplinar operado pela Nêmesis médicaTal como no inolvidável Alienista de Machado de Assis, toda pessoa apresenta algum transtorno mental ao longo de suas vidas. Essa grave doença contemporânea é caracterizada de forma pitoresca, ao longo da obra, por três sintomas básicos: a cegueira, o mutismo e a surdez.
A relação entre a “pathoneurose” e a “medicamentose”, ou seja, a invasão psiquiátrica dos espaços sociais, é abordada ora sob uma ótica trágica, ora numa perspectiva cômica – daí a explicação do título, a tragicomédia
.
A tragédia ocorre em função da contradição entre o interesse do sujeito que procura ajuda e quer ser escutado/cuidado e, de outro, do profissional que, pelo seu lugar e papel social, age quase sempre como um surdo, e cujo trabalho irá aprisionar e medicar, ou seja, irá suprimi-lo enquanto sujeito.
Esta tragédia da subjetividade é descrita em quatro atos: no primeiro, o paciente, sentindo algum malestar, se deixa envolver numa teia de relações buscando ser ouvido/assistido; no segundo ato, o seu enredo é “decodificado” a partir de um cânon médico pré-estabelecido no qual o que ele fala só se torna inteligível quando nomeado ou inserido numa categoria nosológicaou seja, em algum tipo de doença ou patologia; no terceiro, após o exame e análise dos seus sintomas e sinais, o paciente é diagnosticado no seu mal-estar, classificado e batizado; finalmente, no último ato, concluindo a terapêutica, ele é medicado a fim de voltar a ser sadio e normal.

Primeiro Ato: Dos Cegos, Surdos e Mudos.
E se todos nós fôssemos cegos? E se, além de cegos, fôssemos todos surdos e mudos? Esta hipótese não é pura ficção extravagante, mas corresponde ao modo vigente de como opera a práxis psiquiátrica.
Para desenvolver o seu pensamento, o autor elabora uma série de neologismos, dentre os quais sobressai a distinção entre o paciente e o “esperienciante”: o primeiro termo denota alguém que recebe ou suporta a ação de um outro agente; o segundo, ao contrário, é o agente da ação, e o médico ou psiquiatra um facilitador do processo de cura.
Pode dar-se, portanto, ou uma relação interpassiva (onde um cego – o paciente - vai procurar um surdo - o psiquiatra - para continuar cego) ou uma relação intersubjetiva (onde um cego – o “experienciante” - vai procurar um especialista no intuito de ser assistido/escutado e voltar a ver). Como num divertido jogo de xadrez, analisam-se as várias possibilidades que se abrem nestes (des)encontros terapêuticos.
Importante também é a distinção estabelecida entre o psiquiatra, que trata e aborda aquele que sofre como um “experienciante”, através de uma parrêsia, ou seja, através da escuta e diálogo sinceros, e o “encefalatra”, que é uma espécie de veterinário high tech, já que lida com o homem como se fosse um animal ou uma coisa em estado de desequilíbrio, e não na sua dimensão subjetiva como o primeiro.
E para fundamentar a sua crítica ao discurso médico, o autor propõe o retorno às origens hipocráticas da medicina, onde o médico, ao invés de seccionar com o bisturi do olhar hiperespecializado a doença do ambiente onde ela é gestada, via a doença como um texto dentro de um contexto e numa relação intertextual.
O mais importante, neste retorno a Hipócrates, é a questão metodológica: o pai da medicina tinha uma visão dialética da natureza humana, ou seja, compreendia as relações íntimas entre a parte e o todo, e o todo e a parte. Esta visão filosófica da medicina antiga é afim às concepções defendidas pelas medicinas integrativas - como a homeopatia, a terapia floral, a acupuntura, a medicina chinesa e a medicina ayurvédica.

Segundo Ato: Do Enquadramento.
Ao alertar que a língua é um sistema de signos que molda, condiciona e produz determinadas formas específicas de ver o mundo, senti-lo e pensá-lo, formando ou deformando a nossa maneira de conhecer e mesmo visualizar as coisas, o autor pretende neste capítulo explicitar as injunções e ingerências que determinados usos da linguagem acarretam na percepção e ordenamento da realidade.
Uma grande novidade é o conceito de “medicina cultural “ - o poder simbólico capaz de orientar, transmitir segurança, proteção e defesa contra ameaças à sobrevivência social -, e a descrição de como ele opera. Baseando-se em dados antropológicos e históricos, sustenta o autor que nele sempre residiu, ao longo da existência do homem enquanto espécie, o grande poder de cura e proteção dos indivíduos. A seguir, discorre a respeito do genocídio e do etnocídio, as duas maiores ameaças à sobrevivência do ser humano.
E o livro faz um diagnóstico: o que está ocorrendo em nossos dias é a pandemia de uma nova peste - uma AIDS simbólica, cujo efeito é a desregulação da imunologística, ou seja, da “medicina cultural ”.  Essa variante cultural da síndrome de imunodeficiência, ao contaminar a vida social, causa uma debilidade sistêmica que abre caminho para todos os tipos de invasões e agressões oportunistas. E, nesse contexto de enfraquecimento cultural e subjetivo, ocorre a invasão pharmacolonialista.
Inspirando-se em Kierkegaard e Heidegger, o texto sustenta que o conceito de verdade como adequação do diagnóstico aos sintomas e sinais do paciente, que é o modelo adotado pelo discurso médico-psiquiátrico, só poderia se justificar epistemologicamente se fosse fundado no conceito de verdade enquanto aletheia, ou seja, enquanto desvelamento do “experienciante” acerca do seu malestar.
E porque só pouquíssimos psiquiatras hoje em dia fundam a sua prática na escuta sincera do “experienciante”? O que impera nas relações entre o saber psiquiátrico e a verdade do “experienciante”, diz o texto, é uma injunção econômico-política: os tentáculos do pharmacolialismo, ao estenderem o seu domínio às universidades, aos congressos científicos, centros de pesquisa, financiando campanhas publicitárias e controlando sub-repticiamente a mídia, colonizaram todas as consciências, tanto a do profissional quanto a daqueles que sofrem e buscam tratamento. Trata-se de um problema ético e político.
A atividade profissional dos psiquiatras é apresentada como norteada pelo DSM, sua nova Bíblia, o qual consiste numa lista de distúrbios e “doenças mentais”, acompanhada da descrição de suas características básicas. Mas qual é o critério de verdade que serve de base ao DSM? Este manual enciclopédico é fruto do consenso de um grupo de psiquiatras. Mas o “consenso” pode ser tomado como um critério científico de verdade? O autor afirma que a suposta cientificidade desta classificação dos distúrbios e transtornos mentais baseia-se numa epistemologia dos pastores que ditam, a seu bel-prazer, uma ética para as manadas. As ovelhas desgarradas são a clientela dos psiquiatras, as quais, graças à medicação, voltarão a seguir docilmente o rebanho rumo ao matadouro. 
E mais: o uso atual do DSM pelos psiquiatras e demais profissionais, além de perpetrar um “aleticídio”, ou seja, a destruição da verdade enquanto desvelamento subjetivo, está decretando a morte da própria psiquiatria entendida enquanto especialidade médica que tem por objeto a alma humana. Desta forma, sugere que, por uma questão de rigor, em razão de seu anacronismo, a palavra psiquiatria deva ser substituída pelo termo encefalatria: assim ficaria explícita a afinidade da nova psiquiatria com a neurociência, a medicina e a genética.

Terceiro Ato: Do Diagnóstico. 
Através do diagnóstico, o dizer e o ser dos pacientes são capturados por um discurso colonialista que, para impor-se, obriga aos dominados se expressarem numa linguagem que os escraviza, fazendo-os não mais reconhecerem-se e verem-se com os seus próprios olhos, mas através do olhar e dos valores de um sistema que os expropria de si mesmos.
Baseando-se na proposição de Kierkegaard: “Tentar me definir, é querer me limitar”, Ramos enfatiza que a elaboração do diagnóstico clínico opera uma mudança radical tanto em nível do que se supõe ser a realidade do paciente (ontológico) quanto do conhecimento sobre ele (epistemológico), com efeitos profundos sobre o seu tratamento.
Um diagnóstico qualquer, como o de “depressão” por exemplo, ao adquirir uma existência conceitual própria, tende a encapsular o paciente como um todo e a substituí-lo, porquanto a partir de agora o psiquiatra não vai mais tratar do paciente que padece de um sintoma, mas sim do sintoma de que ele padece – a (sua) depressão. Destacando abstratamente a depressão do seu contexto real, o psiquiatra ao mesmo tempo elimina o paciente enquanto sujeito de sua depressão, centrando o seu foco apenas no combate ao sintoma.
Com isso o paciente é engessado, amordaçado, cristalizado dentro de um diagnóstico que só poderia se justificar epistemologicamente através do desvelamento de sua verdade. O sujeito é eliminado do processo.
E conclui: devemos desconfiar de todos os nomes, etiquetas e rótulos, pois entre o termo “deprimido” e a pessoa real que está triste, desanimada ou desesperançosa, a distância é abissal, tanto pelo caráter arbitrariamente convencional dos signos quanto pela riqueza compreensiva da pessoa real em comparação à pobreza extensiva do termo, rótulo ou diagnóstico que pretende designá-la.

Quarto Ato: Da medicalização.
Nesta altura, Ramos elabora uma crítica devastadora à medicalização da vida, enfatizando os malefícios e perigos do uso de psicofármacos para aqueles que desejam o autoconhecimento e a autotransformação.
De início, esgrime três argumentos concatenados: 1) os medicamentos não funcionam da mesma maneira para todos. Os indivíduos são diferentes e reagem de forma desigual aos estímulos. Uma substância administrada para amenizar a depressão pode, por exemplo, induzir ao suicídio a determinadas pessoas. Assim, o princípio ativo pode provocar reações inversas às pretendidas. Confiar num medicamento é sempre uma aposta perigosa e imprevisível; 2) Mesmo que o medicamento funcione para um certo conjunto de pessoas, como está dissociado de uma dietética existencial, ou seja, de um estilo de vida, quando o indivíduo é medicado (ou se automedica) e constata um efeito positivo no melhoramento dos seus sintomas, sente-se imediatamente autorizado a desequilibrar-se ainda mais, já que tem à mão um recurso que pode contornar e aliviar os excessos cometidos. O remédio converte-se na senha para empreender toda a sorte de desatinos. 3) Finalmente, para o restrito grupo daqueles pacientes que não apresentam reações adversas aos medicamentos, nem se permitem transgredir as determinações médicas, a medicação, ao contrário do que se sustenta, é o maior empecilho para um efetivo avanço terapêutico. E o motivo é que nós nunca desejamos tanto estar saudáveis como ao nos sentirmos doentes. Se o medicamento diminui ou cessa o mal-estar, elimina também aquilo que poderia ser a motivação para a busca do bem-estar. Se o medicamento minimiza o sofrimento, diminui também a capacidade de sentir prazer.
Após apresentar uma série de argumentos salientando os malefícios dos psicoativos para a vida do paciente, Ramos oferece uma síntese do amplo leque da iatrogenia psiquiátrica contemporânea: 1) circunscrição da práxis psiquiátrica a uma etiquetagem nosológica limitante das possibilidades de autoconhecimento e autotransformação dos pacientes; 2) disseminação da crença de que os distúrbios mentais são causados por um desequilíbrio químico do cérebro, tese reforçadora da “polematação” do homem e de sua instrumentalização enquanto consumidor passivo de medicamentos e serviços de saúde; 3) negação da verdade subjetiva do paciente em virtude da opção metodológica por um tratamento que prioriza a adequação comportamentalista a uma normalização disciplinar; 4) perda da autonomia e do governo de si decorrente da prescrição de psicoativos – condição aqui denominada de “morte do sujeito”; 5) invalidação parcial ou progressiva do paciente, ocasionada pelos “efeitos colaterais” suscitados pela indicação e uso dos medicamentos , ou seja, pela interdição química e progressiva da existência.
Se a realidade é assim, se buscar um “tratamento psiquiátrico” significa a morte do sujeito, porque as pessoas muitas vezes, de livre e espontânea vontade, buscam os psiquiatras e optam pela “servidão voluntária” para se curar de seus males? Qual a explicação para essa ironia trágica?

O que está por trás desta ironia é, segundo Ramos, a comédia da existência: ser rotulado de “doente mental” afigura-se, para muitos pacientes carentes de amor e de cuidados, como a oportunidade que sempre sonharam. Ser tido como “doente mental” significa que não permanecerão mais abandonado à própria sorte; que a partir de agora serão objeto de atenções especiais médico-psiquiátricas.
Além do mais, sofrer de um malestar inominado é algo muito inquietante. A nomeação do nosso sofrimento, a etiquetagem nosológica dos nossos sintomas pelo discurso psiquiátrico, acarreta frequentemente um alívio: o inominado, o indeterminado, o invisível agora tem um nome e adquiriu “um corpo” simbólico. A partir de agora, pode ser apreciado, estudado e tratado pela ciência médica. O autor apresenta uma série de outros argumentos para explicar a “servidão voluntária” a um “tratamento de saúde” que, na verdade nada mais é do que a supressão ou morte do sujeito.
É esta comédia da existência que sustenta a tragédia da medicalização da vida. 

O Desenlace
Ao final, a que conclusões chega o autor? O que essa tragicomédia da contemporaneidade tem a nos ensinar?
Bem... A fim de evitar que os gentis leitores permaneçam confinados ao papel de pacientes ouvintes destas palavras, mas que possam ter a oportunidade de tornarem-se “experienciantes” de seu próprio processo de conhecimento e elaboração mental, deixamos para cada um a possibilidade de vir a conhecer e construir para si mesmo, a partir de uma leitura direta, suas próprias conclusões e impressões a respeito deste polêmico e instigante livro.
In: http://www.curadores.com.br/site/cont2_pt.php?p=id&v=58

Parrêsia - abertura e coragem da verdade entre médico e paciente

Enviado por Maria Luiza Car..., sex, 11/05/2012 - 21:49

O livro "A Tragicomédia da Medicalização", de José Ramos Coelho - publicado recentemente pela Sapiens - faz uma cartografia dos caminhos trilhados pelas práticas médicas desde os gregos até nossos dias. O prazer da leitura aumenta a cada página, numa narrativa provocadora das mais variadas e contagiantes associações entre filosofia, cultura, ciência e medicina.
Proponho aqui que nos deixemos embalar por suas belas construções. Uma delas nos transporta para uma formulação da relação médico-paciente inspirada pelo conceito de parrêsia. É "a abertura do coração, é a necessidade entre os pares, de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar francamente. Noção (...) que foi para os epicuristas, junto com a amizade, uma das condições, um dos princípios éticos da direção dos indivíduos. A abertura do coração deve ser entendida não apenas no que concerne ao falar, mas também em relação ao ouvir"( Foucault).
Fala Ramos:
"Qual é o escopo da atividade de um psiquiatra? Reside em enunciar diagnósticos precisos e adequados aos sintomas e sinais apresentados pelos seus pacientes, podendo a partir daí indicar uma terapêutica apropriada. Um diagnóstico correto ou verdadeiro é, pois, aquele que se adequa ao problema do paciente. E, pelo contrário, um diagnóstico falso ou equivocado não mostra nenhuma conformidade com o que o paciente apresenta.
Mas como é possível pensar a concordância entre o diagnóstico psiquiátrico e o distúrbio ou perturbação do paciente, se este amiúde age como um mudo diante de um surdo? Sabendo-se que os psiquiatras não dispõem, ao contrário dos médicos, de testes ou exames objetivos que comprovem ser esta ou aquela pessoa portadora de uma síndrome ou não, em que funda a validade dessa concordância?
O diagnóstico só poderia ser a expressão do ser enfermo do paciente se este se abrisse para o profissional, se saísse de seu mutismo numa PARRÊSIA e se revelasse para o outro tal como é. Através dessa abertura, o paciente - ou melhor, o experenciante - expressaria os motivos reais do seu sofrimento e dos seus problemas. Se, como sustenta Heidegger, somente a partir desta abertura é possível a conformidade da enunciação, então "aquilo que torna possível a conformidade tem um direito mais original de ser considerado como a essência da verdade." ( 1970, p. 29 )
E qual é o fundamento dessa possibilidade de abertura do experenciante para com o outro que o escuta? O fundamento dessa possibilidade de conformidade reside na liberdade de poder expressar e dizer o que deve ser dito. "A essência da verdade é, [ pois ] a liberdade" ( 1970, p. 30 ). A questão do fundamento da verdade é então deslocada para a subjetividade do experenciante.
E qual é a essência desta liberdade? A reflexão sobre as relações entre a verdade e a liberdade nos conduz ao problema da essência do homem que se entrega livremente a uma abertura onde se desvela. E aqui temos um novo conceito: a verdade como alethéia ( a = negação; lethe = véu ), ou seja, desvelamento do sujeito.
Um verdadeiro conhecimento sobre o homem e seus conflitos só poderia se fundar a partir da verdade originária por ele desvelada, e não através de uma suposta adequação entre o que é visto e observado pelo psiquiatra e o diagnóstico formulado com base nestas observações".
 Ramos, com a sua coragem da verdade, nos mostra a luta que se trava entre "surdos e mudos" na relação que as práticas psiquiátricas contemporâneas instauram entre médicos e pacientes. Mas, no mesmo movimento, aponta para a abertura de possibilidades de saída deste impasse: lembra-nos do trabalho incansável de Foucault de buscar "pensar diferentemente", olhando para o passado da humanidade ( gregos ) em busca da invenção de um futuro.
 Iza Sardenber

terça-feira, 1 de maio de 2012

Entrevista ao Planeta Jota no lançamento do livro



"As doenças se apresentam dentro de um contexto
subjetivo: os pensamentos, as emoções e as motivações
do indivíduo. Estão relacionadas ao estilo de vida"
Planeta Jota – O que o levou a escrever o livro A Tragicomédia da Medicalização: a Psiquiatria e a Morte do Sujeito ?

Ramos – Basicamente duas coisas: em primeiro lugar, uma contradição que ao longo do tempo foi se tornando mais perceptível e se transformou ultimamente numa convicção pessoal: os psicoativos não estão ao serviço do autoconhecimento e da autotransformação das pessoas. Pelo contrário, as pessoas não medicadas que, embora sofrendo de graves distúrbios, procuravam primeiro o tratamento psicoterapêutico, rapidamente se curavam de seus males, enquanto que os indivíduos medicados apresentavam uma tremenda dificuldade de evoluir clinicamente. Em segundo lugar, notei que as pessoas que eram diagnosticadas por algum distúrbio se sentiam como que encaixotadas, presas numa arapuca simbólica. Esse aprisionamento mental, que chamo de “polematação”, ou seja, a transformação do homem em mercadoria, resulta de uma autoimagem internalizada pelo paciente de que está “possuído” por uma doença ou transtorno mental; que a sua perturbação tem uma origem genética e que é o resultado de um desequilíbrio químico no cérebro. Essa visão de si coisificada só contribui para agravar o quadro clínico e criar dificuldades ao tratamento.

PJ – A que você atribui a dificuldade apresentada pelos pacientes medicados com psicoativos?

Ramos – A primeira é de ordem psicológica. Quando o paciente está sofrendo e não sabe o que se passa consigo, ele se sente mais aberto e propenso a entregar-se a um tratamento que lhe permita superar o seu malestar. Por outro lado, quando ele é diagnosticado no seu mal, essa abertura desaparece. Há uma diferença muito grande entre o diagnóstico médico e o psiquiátrico. Se estou febril e com uma forte dor no peito e vou a um médico, preciso saber com urgência se contraí uma pneumonia ou tuberculose, por exemplo. O conhecimento da causa da minha doença é de uma necessidade vital para mim, a fim de que eu possa adotar o tratamento mais adequado para debelar o mal que me acomete. O diagnóstico vai me permitir saber o tipo de remédio ou antibiótico que vai me curar. Mas se eu procuro um psiquiatra sofrendo de algum malestar, a formulação do diagnóstico antes do tratamento tem um efeito iatrogênico ou danoso sobre o psiquismo do paciente.

PJ – Como assim?

Ramos – Quando o psiquiatra diagnostica, o diagnóstico normalmente vem associado a uma prescrição medicamentosa. E os psicoativos, ao aliviarem os sintomas, eliminam também a motivação que poderia levar o indivíduo à cura de seus males. Desta forma, ao invés do remédio ajudar na cura, como ocorre na medicina, no caso da psiquiatria atrapalha.

PJ – Não é bom para o paciente se livrar de um sintoma que lhe causa sofrimento?

Ramos – Não necessariamente. Esse é o maior equívoco da teoria e da prática psiquiátrica atual e, por extensão, da própria medicina: ver a doença ou o sintoma como o mal, dissociado do seu contexto. No caso da medicina essa descontextualização traz um certo dano, mas no caso da psiquiatria é extremamente nefasta. A medicina vê a doença como um mal que “acontece” ao indivíduo e que não tem nada a ver com ele. Mas, na verdade, a doença é como um texto, uma mensagem que se apresenta à pessoa a fim de que ela a decifre e a compreenda. As doenças se apresentam dentro de um contexto subjetivo (os pensamentos, as emoções, as motivações do indivíduo) e estão relacionadas ao estilo de vida da pessoa. Saber por que certas pessoas são acometidas de um determinado tipo de doença ou porque determinados órgãos são especialmente afetados permitirá que a mesma use estratégias mais eficazes e autosustentáveis de lidar com as suas enfermidades. No caso da psiquiatria a situação é bem pior: os psiquiatras, a partir dos anos 80 do século passado, influenciados pela indústria farmacêutica e pela neurociência, deixaram de ter uma visão psicodinâmica dos conflitos das pessoas, ou seja, passaram a ver o sintoma como o problema, quando, na verdade, o sintoma é uma tentativa precária de conciliação ou resolução de um conflito. O sintoma é justamente a porta que permite ao sujeito adentrar no seu conflito existencial. Eliminar essa porta é condenar o paciente à cegueira e à desconexão consigo mesmo.

"O paciente é um cego que vai procurar
um surdo (o psiquiatra) para continuar cego. Ele não vai se
abrir, só quer um remédio. É a comédia da existência"
 
PJ – Você acha, então, que os psiquiatras não deveriam diagnosticar os seus pacientes?
Ramos – Tem muita coisa errada nessa história. E o primeiro erro é ver aquele que sofre como um “paciente”, e não como um “experienciante”. Ver o outro como paciente é colocá-lo num papel de passividade, é “polematá-lo”. O psiquiatria deveria ver aquele que sofre como um “experienciante”, ou seja, como alguém que, sofrendo de um malestar, pode vir, através dele, ampliar o seu autoconhecimento e transformar-se. O segundo erro diz respeito à postura que o psiquiatra vai adotar diante daquele que o procura. Ele vai estar a serviço de quem? Vai se colocar a serviço do indivíduo, enquanto sujeito, ou da família ou da sociedade que está incomodada com algum aspecto de seu comportamento? Se o psiquiatra vai se colocar a serviço do indivíduo, deveria inevitavelmente adotar a postura socrática do não-saber, que aliás, é não apenas a mais sábia como a mais pertinente ao caso. É a mais sábia, pois o psiquiatra de fato não sabe as razões pelas quais a pessoa está sofrendo. E para descobrir isso, em primeiro lugar, precisa reconhecer o óbvio: que ele ignora o que está acontecendo com aquele que o procura. E é a mais pertinente, pois quando reconhece não saber o que se passa com o outro, abre o espaço para que o outro fale a respeito do seu malestar, atitude que, por si só, terá efeitos positivos no seu quadro clínico. No momento em que o psiquiatra diagnostica, ele interrompe o diálogo e dá o seu veredito: condena o sofredor a ser um doente ou o portador de um determinado transtorno. E nesse processo de condenação a pena a que ele vai estar sujeito é o consumo de algum psicoativo, frequentemente para toda a vida. Essa postura é lastimável. Ela significa a morte do sujeito.

PJ – De que sujeito você está falando?

Ramos - O experienciante, a pessoa que procura viver a sua vida consoante os seus próprios valores, ou seja, a pessoa quee age, pensa, sente e procura realizar os seus desejos e projetos. Esse sujeito principia a morrer no momento em que ele começa a ser classificado e é sepultado quando recebe um diagnóstico.

PJ – O que você propõe, ao que parece, confronta a prática médica. Um psiquiatra não estuda e se forma para bem diagnosticar?

Ramos – No caso do psiquiatra, se ele pensa que ao diagnosticar está exercendo um saber em benefício do experienciante, afirmo que na verdade o que está fazendo é revelar a sua ignorância. Se a psiquiatria deseja apresentar-se como uma ciência, ela deve fundar-se em algum critério de verdade. Aqui estão em jogo dois critérios de verdade: o primeiro, que é a adequação do diagnóstico aos sinais e sintomas do paciente; e o segundo, é o conceito de verdade como aletheia, como desvelamento, ou revelação por parte do experienciante do que se passa consigo. A formulação do diagnóstico, o conceito de verdade como adequação ao sintoma, só poderia adquirir alguma base e sustentação se fosse fundado na verdade do sujeito. Mas o que ocorre, na maioria das vezes, é justamente o contrário: o diagnóstico vem primeiro e aí a verdade do sujeito é suprimida. Essa situação poderia ser descrita metaforicamente como um diálogo de cegos, surdos e mudos: o paciente é um cego que vai procurar um surdo (o psiquiatra que não tem ouvidos para a sua verdade) para continuar cego. E se age como paciente mesmo, ele vai evitar se abrir muito para o psiquiatra. O que ele quer mesmo é um remédio para aliviar os seus sintomas. Essa é a comédia da existência.

PJ - Então isso explica o título do seu livro?

Ramos – Sim. A tragédia da existência é constatar que os homens, em muitos momentos da história, foram tratados como coisas, foram “polematados”. Isso aconteceu em todos os regimes onde as pessoas foram escravizadas. Os senhores antigos, ao vencerem uma guerra, transformavam os vencidos muitas vezes em escravos e se julgavam no direito de vida e morte sobre eles. Se o senhor permitisse ao vencido continuar vivo, o preço desta concessão seria a sua liberdade, ele virar o seu escravo. Há muita semelhança metafórica entre a situação da escravidão e a daqueles que buscam um tratamento psiquiátrico: o preço dele voltar a ser sadio e “normal”, será a supressão de si mesmo enquanto sujeito. Mas a comédia está no fato de que muitas pessoas hoje em dia, estão adotando um estilo de vida onde vivem perpetuamente fugindo de si mesmas. Essa fuga contínua produz muita muitas vezes angústia e ansiedade. E como elas temem o contato consigo mesmas – o qual poderia por um término a essa fuga incessante -, preferem atribuir a causa do seu malestar a algum desequilíbrio químico em seu cérebro, e não a suas escolhas ou omissões. Se veem como coisas e acreditam que a solução de seus problemas seria a ingestão de um psicoativo.

"É preciso distinguir entre a psiquiatria e a “encefalatria”.
O psiquiatra vê o homem como ser simbólico e dotado de linguagem. O encefalatra propõe tratar a mente através do cérebro"
PJ – Mas todas as descobertas feitas pelos neurocientistas, nos últimos anos, não são a confirmação científica dessa tese?

Ramos – Está havendo uma grande confusão e distorção no modo correto de encarar a relação entre o cérebro e a mente. Para explicar a importância que atribuo à bioquímica do cérebro, vou recorrer a uma analogia. Imagine duas situações. Na primeira, um assaltante rouba um carro e foge em alta velocidade colocando em risco a vida das pessoas, tendo a polícia no seu encalço. Na segunda, um motorista, ao saber que sua mãe estava sendo vítima de um assalto, sai em disparada no seu veículo tentando chegar ao local onde ela se encontra a fim de protegê-la.

Consideremos a primeira situação. Se eu perguntasse: o que faz os carros trafegarem mais depressa ou devagar nas estradas da vida? Na opinião dos psiquiatras, médicos e neurocientistas da atualidade, a resposta seria: é a gasolina ou o bom funcionamento do motor. O motivo principal pelo qual o carro conduzido pelo assaltante está em alta velocidade seria o excesso de gasolina que está alimentando o motor, e não a vontade do assaltante em escapar da polícia que o persegue. Isto vem em segundo plano. Na visão mecanicista vigente na atualidade, o que conduz os carros não é a vontade dos condutores, mas a presença ou ausência da gasolina no motor ou o seu bom funcionamento.

Passemos agora para a segunda situação. E acrescentemos que, apesar da vontade do motorista em socorrer a sua mãe, ele não consegue chegar ao local pretendido. E o motivo disso residiu na falta de gasolina no seu veículo. O carro não chegou ao seu destino não porque o motorista assim o quis, mas em função de uma falha mecânica. Esses casos de vez em quando acontecem, seja por descuido do motorista, por falta de manutenção do veículo ou pela presença de algum defeito no carro.

Se tomarmos o condutor como representando a mente e o motor do carro como sendo o cérebro, à pergunta - por que o carro trafega em excesso de velocidade?, dizer que é pelo volume de gasolina que entra no motor não seria propriamente uma inverdade, mas uma impropriedade, uma explicação insuficiente. A gasolina está sendo direcionada ao motor porque o motorista está acelerando. E por que ele está acelerando? Por que não quer ser detido pela polícia. Para se entender a realidade, é preciso ir mais além de uma visão mecanicista que secciona e isola aspectos da realidade que não estão separados.

No segundo exemplo, por sua vez, a explicação mecanicista seria pertinente: o carro para não porque o condutor assim o deseja, mas porque falta gasolina ou apresenta alguma falha independentemente de sua vontade. Na visão mecanicista dos cientistas da atualidade o motor tem mais importância do que o condutor do veículo. Mais adequado seria dizer: salvo algumas exceções, o que ocorre com os carros depende eminentemente da vontade dos seus condutores. É assim que eu penso.

PJ - Na sua opinião, como sugere o seu livro, a psiquiatria está matando o sujeito, o ser.

Ramos – Não gostaria que vissem o meu livro propriamente como uma crítica à psiquiatria. O livro é inspirado em dois grandes psiquiatras e é dedicado à Dra. Nise da Silveira. É preciso fazer uma distinção entre a psiquiatria e a “encefalatria”. O psiquiatra é o profissional que trata o experienciante como um sujeito, através da escuta e diálogos sinceros, vendo o homem como um ser simbólico e dotado de linguagem. O encefalatra é o profissional que propõe o tratamento da mente através do cérebro. O livro é na verdade uma defesa da psiquiatria autêntica contra a encefalatria, pois esta última toma o homem como um mero animal, um ser bioquímico. As explicações bioquímicas, em alguns casos, podem ser as mais adequadas, mas na maioria das vezes a elucidação do malestar das pessoas encontra-se na mente e não no cérebro.

PJ - A Tragicomédia é o seu primeiro livro?

Ramos – Não. Já escrevi cinco livros antes. O primeiro, um livro de fábulas – A Colina e o Abismo, foi escrito em coautoria com José Paulo de Melo Cabral. O segundo – A Magia na Aldeia Global, aborda os comerciais televisivos a partir de uma perspectiva antropológica. O terceiro – De Narciso a Édipo: a criação do artista, contem a minha tese de doutorado em psicologia clínica. E o último – A terapia da excelência: uma introdução ao método da estética existencial, apresenta uma sistematização preliminar do meu método terapêutico. Este livro publicado agora pelo Sapiens é o resultado das observações a partir de minha prática como terapeuta.