sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

 O AMOR CONTIDO: considerações ao livro “Descolonizando os afetos” da pensadora guarani Geni Nuñez.

Certos temas são considerados tabus, ou seja, estão vedados à questionamentos e discussões. Dentre esses, talvez um dos mais sagrados à civilização ocidental seja o da monogamia. Assim, mesmo correndo o risco de desestabilizar opiniões profundamente arraigadas, ousarei comentar o notável ensaio da psicóloga e pensadora indígena Geni Nuñez, já que a mesma, sendo de outra tradição cultural - o que lhe permite um olhar diferenciado -, toca em pontos cruciais a respeito desse assunto.
A autora empreende com suavidade, poesia e pertinência a denúncia ao etnocídio colonialista perpetrado no Brasil contra os povos originários. Enfatiza o esforço dos jesuítas em erradicar as não-monogamias indígenas – o fato dos índios poderem se relacionar livremente com vários parceiros, sem conflitos ou repressão -, pois as mesmas representavam uma ameaça frontal à implantação de uma monocultura imperialista centrada na monogamia.
Para o projeto colonialista no Brasil, tornou-se absolutamente necessário negar todo o modo de vida dos povos originários, desde os dialetos nativos pela imposição da língua portuguesa, até a condenação da grande oca onde todos conviviam e se aglutinavam em torno das narrativas míticas e dos seus rituais, apontada como a morada do diabo e local de promiscuidade. Assim, após queimadas e destruídas, essas grandes ocas coletivas deram lugar a casas isoladas, dividindo-se a aldeia em pequenos núcleos familiares, tornando assim a tribo mais vulnerável à influência externa e à destruição dos seus costumes, quebrando na base a sua unidade cultural.
Acima de tudo, porém, era imperiosa a implantação da monogamia, imprescindível à adoção do batismo, sem o qual a dominação religiosa tornar-se-ia impossível.
Por que a monogamia é tão importante nesse contexto?
A razão reside no fato da monogamia ser a projeção na estrutura familiar do monoteísmo: da mesma forma que, no discurso fundamentalista do racismo religioso, só existe um Deus, condenando-se todos os demais deuses e religiões, só pode haver uma única forma de estrutura familiar, constituída pelo casamento entre um homem e uma mulher, sendo considerado adultério qualquer relação fora do casamento.
Exclusivista, o Deus cristão não admite a convivência com outras religiosidades. Impõe-se como o único caminho, tendo por missão converter todos os outros credos à sua verdade.
O próprio conceito de adultério, segundo Nuñez, é empregado primeiramente nesse contexto religioso para se referir à adoração de outros deuses por parte dos infiéis. A partir daí se desloca da religião para as relações familiares.
É possível a alguém, que cria vários gatinhos, amar intensamente a vários deles? Da mesma forma, alguém que é apaixonado por plantas, pode adorar ao mesmo tempo uma orquídea e um cambucazeiro? Indo mais além: seria lícito alguém amar e se relacionar com duas pessoas simultaneamente? Para a monocultura cristã, não: pois essa possibilidade destruiria o vínculo matrimonial e o compromisso de fidelidade “até que a morte os separe”.
Ocorre que, da mesma forma que o empreendimento colonial visa no fundo à exploração e subjugação dos povos colonizados, a monogamia tradicionalmente sempre serviu ao domínio patriarcal sobre as mulheres. Ao casar, a mulher – até há bem pouco tempo – mudava de nome, recebendo o nome da família do seu marido. A partir de então era como se ela lhe pertencesse. Esse compromisso de fidelidade é a origem de todas as formas de controle e cerceamento da liberdade, e a razão principal do feminicídio, muitas vezes praticado em nome “da honra” ou por que “[o marido] não aceitava o término da relação”.
“Em Coríntios 1, capítulo 7, versículo 4, há - afirma Nuñez – um trecho que diz: “a mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao seu marido. E da mesma forma o marido não pode dispor do seu corpo: ele pertence à sua esposa”. Como consequência desta concepção, 90% dos feminicídios são praticados por companheiros ou ex companheiros das vítimas. Por outro lado, conforme aponta a autora, esse tipo de crime é completamente ausente no contexto tribal, onde impera relações não-monogâmicas.
A propósito, a violência não só é dirigida contra as companheiras: “a monogamia faz parte da conjuntura da família defendida pelo Estado, caracterizada também pela heterocisnorma que orienta a misoginia e as demais violências sofridas por pessoas sexo-gênero dissidentes. O Brasil, país onde cerca de 90% da população se afirma cristã, é um dos líderes mundiais nos índices de assassinatos contra mulheres cis e pessoas trans.”
A monogamia está a serviço de que?
Sem dúvida, do capitalismo patrimonialista. O celibato dos padres e a monogamia atende perfeitamente ao desejo de acumulação da riqueza, uma vez que, ao fazer o inventário para a partilha da herança, poucos seriam os herdeiros. Contudo, esse modelo é útil a quem os adota? Torna as pessoas mais felizes?
Eu, há alguns anos atrás, observei no meu entorno – tal qual Diógenes com a sua lamparina – procurando um casal que fosse um exemplo e protótipo de uma estrutura monogâmica feliz. E disse para mim mesmo: sim, ele existe. Os pais se tratam de forma amorosa, cordial e respeitosa, o mesmo ocorrendo entre eles e os filhos. Pareceu-me uma família admirável e perfeita. Logo me dei conta, porém, que a aparente harmonia residia no ocultamento da verdade. Quando ela foi revelada, a unidade familiar ruiu.
O fato é que o casamento hoje em dia está em crise e os jovens se mostram arredios em relação a ele. Nas suas experimentações amorosas, estão procurando alternativas criativas em contraposição à falência generalizada da família.
Na verdade, a monogamia, proposta para preservar o amor, não apenas tem sido a motivação básica para a prática interpessoal de violência; fundamentalmente, essa violência se volta também para o interior da própria pessoa sob a forma de desânimo, infelicidade e autoabandono. Esses são os efeitos do que a autora chama de “afeto colonizado”.

Se é possível amar o rio e o mar, as paisagens e as florestas, os animais e as plantas, em nome de que a necessidade de submeter os afetos a um disciplinamento rígido e sufocante?
Não pretendo aqui antecipar as análises da autora acerca das perspectivas da não-monogamia. Recomendo o(a) curioso(a) leitor(a) beber diretamente da fonte.
Concluo citando a libertária Nuñez:
“Celebrar nossas paixões é tão legítimo quanto nadar no rio: a mesma natureza que nos deu a vida nos presenteou com a liberdade. Por isso, o primeiro território que descolonizo é a minha pele”.