segunda-feira, 5 de setembro de 2022

LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?

 

LUCIDEZ OU ESTUPIDEZ?

A lucidez de uma pessoa é inversamente proporcional ao grau de condescendência que ela tem consigo mesma. Em outras palavras, a sua reserva de lucidez é diretamente proporcional à intensidade de contrariedade que ela cotidianamente impõe a si mesma.

Essa é uma questão crucial. Talvez o tema mais importante para alguém que deseje realmente tornar-se um ser livre e racional.

Voltemos então a repeti-lo: o nível de consciência de uma pessoa depende de quão constantemente ela se põe à prova, se questiona, duvida dos seus valores ou crenças e testa os seus limites.

É preciso reconhecê-lo: atingir algum grau de lucidez não é nada fácil. Alcançá-la exige desapego, ousadia, coragem e uma boa dose de esperança.

Desapego – de todos os hábitos arraigados. Ousadia – em experimentar algo inteiramente novo. Coragem – em saltar no abismo do desconhecido, abandonando o solo firme do já consolidado, do assimilado, do mundinho familiar. E esperança em acreditar que é possível sair do cativeiro.

Em suas Meditações Metafísicas, o filósofo Descartes, um dos maiores gênios da humanidade, faz uma proposta altamente audaciosa: que colocássemos em dúvida todos os nossos conhecimentos anteriores, submetendo-os a uma dúvida metódica a fim de verificar, após esse processo exaustivo de auto inquirição, o que existe de verdadeiro ou falso naquilo que aceitamos. Quem teria a coragem e determinação para um empreendimento dessa magnitude?

Talvez esse seja o desafio mais difícil e inquietante a que um ser humano possa se dedicar. É por isso que, em sua imensa maioria, as pessoas encontram-se num processo de completo estupor, ou seja, vivem como meros autômatos, seguem padrões pré-estabelecidos, preconceitos, programas pré-fabricados, agindo como robôs. A sombra da inconsciência as domina por completo. Enroladas no círculo vicioso das repetições sem fim, elas vivem como Sísifo realizando o seu eterno castigo.

Não causa surpresa, portanto, o fato de que muitas delas, mesmo quando desejam livrar-se dessa Roda de Samsara, não o conseguem. Acabam voltando ao mesmo ponto: seja o desejo de não cometer os mesmos erros de sempre, de seguir a dieta tão sonhada, de realizar tudo aquilo que sabe perfeitamente ser benéfico para si... e não o conseguem. A força da inércia é maior do que elas mesmas.

Como um ser que não tem mais controle sobre si mesmo, pode considerar-se um ser racional, um “homo sapiens”? Com muito mais razão, dever-se-ia defini-lo como um “homo demens”, um ser cujo sintoma mais característico é a perda de sua liberdade e a renúncia à autogestão de sua própria vida.

O terrível, o sinistro, o assustador é constatar que somos o tempo todo condicionados a sermos peças de uma engrenagem que se retroalimenta. E, ainda pior: muitos se vangloriam e se comprazem com esse condicionamento em massa, dependendo do nível em que se situa dentro dessa hierarquia de controle que os domina e à qual voluntariamente servem.

Apesar de toda essa tendência onipresente, é possível acender uma luz na escuridão. Está ao nosso alcance, em cada instante de nossa vida, seguir a roda viva - ou não. Podemos fazer diferente. Exercitar a divina arte de sermos únicos, originais, inconfundíveis.

Concluo com a profunda e penetrante reflexão do grande Dostoiévski:

“Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”.

José Ramos Coelho – 02 de agosto de 2020.

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