Três elementos saltam aos olhos na
anatomia do machismo para uma análise mais detida: o pênis, o ânus e a vagina.
A vagina seria o não-pênis, a ausência dele – ou a castração, segundo Freud. Os
três são órgãos relacionais, ou seja, fazem a conexão entre o dentro e o fora.
Essa tópica corporal poderia ser
associada a uma tópica mental, constituída pela construção ideológica de três
papéis distintos, porém interligados: o machão, o gay e a mulher.
Ora, toda afirmação só adquire
sentido a partir de uma negação que a sustenta. Se eu digo: “É dia”, essa
afirmação só se torna compreensível a partir da percepção de que, de fato, não
é noite. Sem a noite não haveria o dia, e vice-versa. Ou, como diria o grande
Spinoza, “toda determinação implica numa negação”.
As leis que regem o mundo externo são
as mesmas que comandam o campo do psiquismo. Segundo Newton, toda força
aplicada a algum objeto recebe a ação de outra força igual e contrária que a
resiste. Para que o objeto seja deslocado, a força aplicada precisa ser maior
do que a resistência oposta.
Pois bem: o canto de Ossanha do
machismo é duplamente traidor. Denuncia tanto o seu embuste quanto sua
covardia. Quem diz – sou macho, já não é. Quem é, não o diz. O que é ser
machão? É colocar-se numa posição de força, de virilidade, de poder frente a
outro. Que outro(s)? Os gays e as mulheres.
Estamos então, esquematicamente,
diante da seguinte classificação sexista e ingênua:
Homem – pênis.
Gay – ânus.
Mulher – Vagina.
Portanto, o machismo adota uma visão
unipolar: o pênis é o órgão do caçador, é o ativo, o que – supõe-se – penetra.
Já o ânus e a vagina, seriam orifícios penetráveis, passivos.
Essas correspondências entre a
anatomia e a psicologia só podem ser adequadamente interpretadas e
compreendidas a partir do que elas ocultam, quer dizer, de suas fragilidades.
A fragilidade do machão é possuir um
ânus. E o seu temor é virar gay.
Ser gay, supostamente, seria optar
pela entrega e não pelo lugar de poder socialmente estabelecido. Por isso todo
o esforço do machão é afirmar-se como macho, virilizar-se, encher-se de
soberba. Prefere mais ser temido do que amado. A máscara de coragem é o melhor
disfarce para o seu medo de que descubram quem ele realmente é.
Ao colocar-se numa posição
hierarquicamente superior ao(s) outro(s), inevitavelmente se distancia dele(s).
Nesse sentido, a idealização do poder pelo machismo resulta da castração da
entrega, associada ao ânus e à vagina. Quando a cidadela é fortemente murada,
os seus vínculos com as comunidades circundantes tornam-se controlados,
vigiados e restritos.
O machismo, portanto, é um movimento
compensatório de um déficit de entrega e afeto. O temor das trocas afetivas,
dar e receber em igualdade, gera o machismo. O vazio de amor leva à busca pelo
poder. Já que sofre de um déficit crônico de afeto e contato, precisa roubá-lo,
assediar, estuprar para recriar algum vínculo, ainda que forçado.
Daí a sua apologia ao pênis e o seu
desprezo/horror pelo ânus e a vagina. Na tosca ideologia machista, o falo é
dotado de valor e positividade, ao contrário do ânus e da vagina. Se é assim,
como lidar com o fato de que os seres são gerados pelas mulheres e é através do
canal vaginal que vem ao mundo? A potência de gerar não contradiz a ideia da
vagina como um desvalor ou algo negativo e faltante? Essa incoerência é
aparentemente resolvida pela concepção de domínio e posse: "a mulher tem o
poder de gerar. Mas ela ê minha". A noção de propriedade dos corpos
ameniza o vazio da perda do vínculo.
Nesta divisão dos seres entre os
penetrantes e os penetrados, ronda o perigo da possibilidade de que os lábios
da vagina, por exemplo, forme a boca que devora, da mesma forma que o
louva deus macho, ao copular, é comido pela fêmea. O caçador tornar-se-ia,
nesta hipótese, a presa caçada. Puro horror.
Daí a valorização do pênis e o temor
à violação do (seu) ânus. O primeiro simboliza um suposto poder e, o segundo,
uma suposta fraqueza. Se a pele separa o campo do que é externo ao corpo do que
é interno, o ânus não está fora do corpo. Assim, o horror aos gays pode ser
associado à vergonha ligada ao ânus.
O horror do machismo aos gays delata
o temor do ser do outro vir a desmascara-lo em seu embuste. Estes passam a ser
o espelho do que o machão não quer ver em si mesmo. O pai machista diz ao
filho: “não faça teatro, pois é uma escola de bichas”. Certamente, supõe que,
se seu filho seguir esse caminho, pode correr o risco de desbundar e
transviar-se. Precisa se conter!
A ideologia do machismo consegue ser
elástica ao ponto de permitir a um machão relacionar-se com um igual sem que
venha a considerar-se gay, desde que assuma um papel ativo...
Além de seu caráter embusteiro, a
opressão do feminino pelo machismo, por seu turno, delata a sua covardia.
Covardia de assumir o seu feminino interior, projetada exteriormente num medo
às mulheres. Daí a necessidade de controla-las e domina-las. Covardia de
manipular o poder para explorar o outro e não se livrar dos próprios medos.
Proibido culturalmente de chorar, ou
falar de seus sentimentos, só resta ao machāo endurecer-se, petrificar-se e
fingir ser o que não é. Virar um embusteiro. Por isso, é bem raro um machão
permitir-se fazer terapia. O pavor dos seus sentimentos mais profundos o
interdita. A verdade faria ruir sua visão de mundo.
Eu não escrevo movido por qualquer
raiva do machismo. Se não houvesse em mim algum nível dele, jamais o
compreenderia. “Nada do que é humano me é estranho”.
Dissecar o machismo é revirar o que
encontro dele em mim. Exige que eu seja um Quirão (terapeuta) de mim mesmo. O
olho do cirurgião também é olhado de fora, por mim.
O cadáver que o cirurgião autopsia é
o seu próprio corpo.
José Ramos Coelho 16/agosto/1922
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