segunda-feira, 5 de setembro de 2022

ANATOMIA DO MACHISMO

 

Três elementos saltam aos olhos na anatomia do machismo para uma análise mais detida: o pênis, o ânus e a vagina. A vagina seria o não-pênis, a ausência dele – ou a castração, segundo Freud. Os três são órgãos relacionais, ou seja, fazem a conexão entre o dentro e o fora.

Essa tópica corporal poderia ser associada a uma tópica mental, constituída pela construção ideológica de três papéis distintos, porém interligados: o machão, o gay e a mulher.

Ora, toda afirmação só adquire sentido a partir de uma negação que a sustenta. Se eu digo: “É dia”, essa afirmação só se torna compreensível a partir da percepção de que, de fato, não é noite. Sem a noite não haveria o dia, e vice-versa. Ou, como diria o grande Spinoza, “toda determinação implica numa negação”.

As leis que regem o mundo externo são as mesmas que comandam o campo do psiquismo. Segundo Newton, toda força aplicada a algum objeto recebe a ação de outra força igual e contrária que a resiste. Para que o objeto seja deslocado, a força aplicada precisa ser maior do que a resistência oposta.

Pois bem: o canto de Ossanha do machismo é duplamente traidor. Denuncia tanto o seu embuste quanto sua covardia. Quem diz – sou macho, já não é. Quem é, não o diz. O que é ser machão? É colocar-se numa posição de força, de virilidade, de poder frente a outro. Que outro(s)? Os gays e as mulheres.

Estamos então, esquematicamente, diante da seguinte classificação sexista e ingênua:

Homem – pênis.

Gay – ânus.

Mulher – Vagina.

Portanto, o machismo adota uma visão unipolar: o pênis é o órgão do caçador, é o ativo, o que – supõe-se – penetra. Já o ânus e a vagina, seriam orifícios penetráveis, passivos.

Essas correspondências entre a anatomia e a psicologia só podem ser adequadamente interpretadas e compreendidas a partir do que elas ocultam, quer dizer, de suas fragilidades.

A fragilidade do machão é possuir um ânus. E o seu temor é virar gay.

Ser gay, supostamente, seria optar pela entrega e não pelo lugar de poder socialmente estabelecido. Por isso todo o esforço do machão é afirmar-se como macho, virilizar-se, encher-se de soberba. Prefere mais ser temido do que amado. A máscara de coragem é o melhor disfarce para o seu medo de que descubram quem ele realmente é.

Ao colocar-se numa posição hierarquicamente superior ao(s) outro(s), inevitavelmente se distancia dele(s). Nesse sentido, a idealização do poder pelo machismo resulta da castração da entrega, associada ao ânus e à vagina. Quando a cidadela é fortemente murada, os seus vínculos com as comunidades circundantes tornam-se controlados, vigiados e restritos.

O machismo, portanto, é um movimento compensatório de um déficit de entrega e afeto. O temor das trocas afetivas, dar e receber em igualdade, gera o machismo. O vazio de amor leva à busca pelo poder. Já que sofre de um déficit crônico de afeto e contato, precisa roubá-lo, assediar, estuprar para recriar algum vínculo, ainda que forçado.

Daí a sua apologia ao pênis e o seu desprezo/horror pelo ânus e a vagina. Na tosca ideologia machista, o falo é dotado de valor e positividade, ao contrário do ânus e da vagina. Se é assim, como lidar com o fato de que os seres são gerados pelas mulheres e é através do canal vaginal que vem ao mundo? A potência de gerar não contradiz a ideia da vagina como um desvalor ou algo negativo e faltante? Essa incoerência é aparentemente resolvida pela concepção de domínio e posse: "a mulher tem o poder de gerar. Mas ela ê minha". A noção de propriedade dos corpos ameniza o vazio da perda do vínculo.

Nesta divisão dos seres entre os penetrantes e os penetrados, ronda o perigo da possibilidade de que os lábios da vagina, por exemplo, forme a boca que devora, da mesma forma que o louva deus macho, ao copular, é comido pela fêmea. O caçador tornar-se-ia, nesta hipótese, a presa caçada. Puro horror.

Daí a valorização do pênis e o temor à violação do (seu) ânus. O primeiro simboliza um suposto poder e, o segundo, uma suposta fraqueza. Se a pele separa o campo do que é externo ao corpo do que é interno, o ânus não está fora do corpo. Assim, o horror aos gays pode ser associado à vergonha ligada ao ânus.

O horror do machismo aos gays delata o temor do ser do outro vir a desmascara-lo em seu embuste. Estes passam a ser o espelho do que o machão não quer ver em si mesmo. O pai machista diz ao filho: “não faça teatro, pois é uma escola de bichas”. Certamente, supõe que, se seu filho seguir esse caminho, pode correr o risco de desbundar e transviar-se. Precisa se conter!

A ideologia do machismo consegue ser elástica ao ponto de permitir a um machão relacionar-se com um igual sem que venha a considerar-se gay, desde que assuma um papel ativo...

Além de seu caráter embusteiro, a opressão do feminino pelo machismo, por seu turno, delata a sua covardia. Covardia de assumir o seu feminino interior, projetada exteriormente num medo às mulheres. Daí a necessidade de controla-las e domina-las. Covardia de manipular o poder para explorar o outro e não se livrar dos próprios medos.

Proibido culturalmente de chorar, ou falar de seus sentimentos, só resta ao machāo endurecer-se, petrificar-se e fingir ser o que não é. Virar um embusteiro. Por isso, é bem raro um machão permitir-se fazer terapia. O pavor dos seus sentimentos mais profundos o interdita. A verdade faria ruir sua visão de mundo.

Eu não escrevo movido por qualquer raiva do machismo. Se não houvesse em mim algum nível dele, jamais o compreenderia. “Nada do que é humano me é estranho”.

Dissecar o machismo é revirar o que encontro dele em mim. Exige que eu seja um Quirão (terapeuta) de mim mesmo. O olho do cirurgião também é olhado de fora, por mim.

O cadáver que o cirurgião autopsia é o seu próprio corpo.

José Ramos Coelho 16/agosto/1922

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