ENCENAÇÕES
Shakespeareanamente falando, a vida é
um palco – e nós, atores ou figurantes nesse vasto teatro da existência.
Os atos e cenas que represento sempre
foram objetos de assíduas reflexões. Como num metafísico jogo de
esconde-esconde, continuamente fico a procurar onde me escondi e ocultei de mim
mesmo. Talvez seja essa a grande tragédia da existência: acreditar ser o que
não se é. Tomar a aparência como se fosse a essência, o ser em seus momentos de
ocultamento, e não de revelação. Daí, talvez a grande virtude da socrática
ignorância: saber que não se sabe. Olhar para além do fenômeno. Escutar o som
do silêncio.
Camuflo-me de mim com frequência ao
procurar amoldar-me às expectativas alheias ou me apegar às meras repetições do
que fiz. Ou, inversamente, ao esperar que os outros se conformem às minhas...
Quando seguro algo firmemente no
intuito de retê-lo, a impermanência da vida logo trata de retirá-lo de mim e
dissolve-lo entre os meus dedos. E eis-me frustrado e inconformado.
Na verdade, o que guardamos,
perdemos. E o que doamos, levamos. Por isso, talvez o verdadeiro núcleo do
existir não esteja encerrado no fundo do ser, mas na potência da relação, no
dar e receber, no intercâmbio de afetos e ideias, nas trocas profundas e
inenarráveis.
O que sou torna-se então inefável, já
que as referências fixas me aprisionam e empobrecem.
Talvez por isso sempre me evadi das
cristalizações, dos enrijecimentos esclerosados, manifestando visceral
antipatia pela maestria e uma simpatia pelo amadorismo. Quando fazemos muito
uma coisa só, tornamo-nos peritos e especialistas na dita modalidade – e
ficamos presos a ela. Ela passa a nos consumir e a nos definir. Assim, como um
nômade de mim, tão logo percebo estar me assenhorando de algum ofício ou
deitando raízes numa determinada atividade, logo sobrevém uma inquietação, um
desassossego – e lá vou eu em busca de novas paragens, conhecimentos outros,
descobertas.
Quem me vê, dificilmente me reconhece
verdadeiramente. Ao querer encontrar uma faceta de mim, visualiza outras que
não esperava e se desconcerta neste caleidoscópio em movimento ao qual
atribuíram um nome. Se estou em busca de mim, quem me procura num velho lugar
já estou em outro, alhures.
Vivo no contrafluxo da multidão que
valoriza
a aparência – e não a essência
o ser – e não a relação
a posse – e não busca
a produção – e não a contemplação
a especialidade – e não a
generalidade
a ciência – e não o mito.
Meu ofício nesta vida talvez seja o
de um simples rasgador de papéis, um faxineiro das máscaras, um eterno aprendiz
de mim mesmo.
José Ramos Coelho - 02/07/2022.
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