segunda-feira, 5 de setembro de 2022

ENCENAÇÕES

 

ENCENAÇÕES

Shakespeareanamente falando, a vida é um palco – e nós, atores ou figurantes nesse vasto teatro da existência.

Os atos e cenas que represento sempre foram objetos de assíduas reflexões. Como num metafísico jogo de esconde-esconde, continuamente fico a procurar onde me escondi e ocultei de mim mesmo. Talvez seja essa a grande tragédia da existência: acreditar ser o que não se é. Tomar a aparência como se fosse a essência, o ser em seus momentos de ocultamento, e não de revelação. Daí, talvez a grande virtude da socrática ignorância: saber que não se sabe. Olhar para além do fenômeno. Escutar o som do silêncio.

Camuflo-me de mim com frequência ao procurar amoldar-me às expectativas alheias ou me apegar às meras repetições do que fiz. Ou, inversamente, ao esperar que os outros se conformem às minhas...

Quando seguro algo firmemente no intuito de retê-lo, a impermanência da vida logo trata de retirá-lo de mim e dissolve-lo entre os meus dedos. E eis-me frustrado e inconformado.

Na verdade, o que guardamos, perdemos. E o que doamos, levamos. Por isso, talvez o verdadeiro núcleo do existir não esteja encerrado no fundo do ser, mas na potência da relação, no dar e receber, no intercâmbio de afetos e ideias, nas trocas profundas e inenarráveis.

O que sou torna-se então inefável, já que as referências fixas me aprisionam e empobrecem.

Talvez por isso sempre me evadi das cristalizações, dos enrijecimentos esclerosados, manifestando visceral antipatia pela maestria e uma simpatia pelo amadorismo. Quando fazemos muito uma coisa só, tornamo-nos peritos e especialistas na dita modalidade – e ficamos presos a ela. Ela passa a nos consumir e a nos definir. Assim, como um nômade de mim, tão logo percebo estar me assenhorando de algum ofício ou deitando raízes numa determinada atividade, logo sobrevém uma inquietação, um desassossego – e lá vou eu em busca de novas paragens, conhecimentos outros, descobertas.

Quem me vê, dificilmente me reconhece verdadeiramente. Ao querer encontrar uma faceta de mim, visualiza outras que não esperava e se desconcerta neste caleidoscópio em movimento ao qual atribuíram um nome. Se estou em busca de mim, quem me procura num velho lugar já estou em outro, alhures.

Vivo no contrafluxo da multidão que valoriza

a aparência – e não a essência

o ser – e não a relação

a posse – e não busca

a produção – e não a contemplação

a especialidade – e não a generalidade

a ciência – e não o mito.

Meu ofício nesta vida talvez seja o de um simples rasgador de papéis, um faxineiro das máscaras, um eterno aprendiz de mim mesmo.

José Ramos Coelho - 02/07/2022.

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