terça-feira, 1 de maio de 2012

Entrevista sobre o tema da Medicalização da Vida



RAMOS É ENTREVISADO POR ROBERTO RODRIGUES SOBRE O TEMA DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA (26/04/12)

 RR – Você poderia esclarecer o que é medicalização, o tema do seu livro?

Ramos – A partir da segunda metade do século XX, intensificou-se um processo de mudança nas estratégias de controle e dominação dos indivíduos dentro das sociedades. A medicina e a psiquiatria ampliaram o seu campo de atuação ao redefinir os conceitos de “normal” e “anomal”, ou de “sadio” e “patológico” e passaram a atuar em áreas que antes não eram objeto de intervenção médica. Comportamentos, atitudes, sentimentos e emoções foram patologizados e, consequentemente, considerados como demandando um tratamento médico. O conceito de “medicalização” indica essa extrapolação ou invasão de novos espaços sociais, redefinidos como sendo espaços legítimos de intervenção médica. Como disse Foucault, estamos migrando de uma sociedade baseada em leis, para uma sociedade baseada em normas – normas essas ditadas pelo discurso médico-psiquiátrico.

RR – Você não vê como um avanço o uso de novas tecnologias e medicamentos a fim de tratar os distúrbios e transtornos das pessoas na contemporaneidade?

Ramos – Em parte vejo como um avanço, em parte – caso caracterize um processo de medicalização da vida - como um novo empreendimento colonialista, como uma manifestação do que eu chamo de ampliação do “pharmacolonialismo”. Quando afirmo que algo é doentio, quando eu torno algo patológico, automaticamente, caso eu seja um médico, me autorizo a “tratar” esse ser doente – com ou sem o seu consentimento. É exatamente isso o que ocorria quando eram “descobertas” novas terras por parte dos colonizadores europeus do passado: eles achavam que os povos “descobertos” eram “selvagens”, seres perdidos, sem Deus e vivendo na ignorância; e, consequentemente, se atribuíam não apenas o direito mas igualmente o dever de colonizá-los, educá-los, transformá-los naquilo que eles, os europeus, consideravam como sendo o melhor para eles. Tudo isso eram apenas racionalizações criadas para justificar o domínio e a exploração.

RR – Mas não se trata de duas coisas bem diferentes - a intervenção médica e a colonizadora?

Ramos - Para mim são muito parecidas. A medicina está cada vez mais ocupando o lugar da religião. A consulta médica está assumindo as feições e o modo de operar dos antigos confissionários: as pessoas vão lá para confessar os seus pecados, quer dizer, as suas “doenças” ou “perturbações”, e, ao fazê-lo, vão precisar pagar penitência, ou seja, a ingestão de algum medicamento para purificar-se. Para mim, os médicos da atualidade, como os sacerdotes ou jesuítas de antigamente, atuam como os emissários e facilitadores de um grande projeto colonialista.

RR – Você não vê como uma expressão de humanidade ou de cuidado o fato de um médico ou psiquiatra querer ajudar quem está doente ou com algum transtorno?

Ramos – Não necessariamente. Isso vai depender de algumas coisas. Primeiro: se a pessoa para a qual se destina a intervenção está de acordo com ela ou não, ou seja, se essa ação vai estar a serviço dela ou do sistema colonialista. Em segundo lugar, é preciso avaliar a pertinência ou não de aplicar o conceito de doença ou transtorno ao caso, pois ultimamente muitos transtornos estão sendo inventados a torto e a direito. E terceiro, há o perigo implícito nesse empreendimento de transformar os seres humanos em coisas.

RR – Como um paciente que é ajudado pode virar uma coisa?

Ramos – A “doença” é vista pela medicina atual como sendo uma algo ruim que “acontece” ao indivíduo, como uma fatalidade, como um mal evitável – e não como a expressão do seu estilo de vida, de suas vivências, seus desejos, ações e omissões. A doença é descontextualizada da vida da pessoa e o médico se vê como um policial que vai usar todos os conhecimentos e o aparato tecnológico de que dispõe para destruir esse inimigo. Além do mais, os médicos têm sido doutrinados, em sua formação, no sentido de maximizarem a importância da genética e minimizarem os fatores subjetivos implicados nesse processo. Quando o paciente acredita nisso, que ele é um produto da genética e que ele não tem nada a ver com a doença que o acomete, ele vira uma coisa. Perde a liberdade, não se sente mais responsável por si mesmo. Além disso, o tratamento médico vai torná-lo um cego e um surdo para a sua verdade, e vai mantê-lo num contínuo mutismo, pois ele só vai falar de assuntos periféricos.

RR – Que tipo de assuntos?

Ramos – Ele vai ser colonizado na sua consciência e no seu modo de ver a sua vida, passando a adotar a visão do médico e esquecendo de sua própria verdade. A verdade do médico, que é o diagnóstico dele, vai se sobrepor à sua verdade subjetiva. Isso o mantém no lugar de paciente, de coisa, e não de experienciante, ou seja, de alguém que é um sujeito de sua própria existência.

RR – Qual é então a sua proposta? As pessoas deveriam ficar à mercê de si mesmas, abandonadas à própria sorte e “livres” dos médicos e psiquiatras?

Ramos – Não. No meu modo de ver, as políticas de saúde deveriam sofrer uma grande reformulação e reorientação e instituir uma mudança nas suas práticas e tratamentos. Em primeiro lugar, seria importante desconstruir a ideia de que aquele que sofre é um paciente e vê-lo como um experienciante, ou seja, como alguém que é dono de sua própria vida. Em segundo lugar, eu estimularia tratamentos mais brandos e que levassem em conta o homem na sua dimensão corporal, mental e espiritual. Em terceiro lugar, incentivaria iniciativas grupais, sociais e comunitárias que permitissem às pessoas dialogar, discutir e elaborar as suas dificuldades, conflitos e problemas. A esperança de um mundo melhor e mais saudável começaria a partir dessas iniciativas em pequenos grupos, as quais iriam aos poucos configurando processos mais integrados que por fim levariam a uma polisterapia, ou seja, um novo espaço de conhecimento e transformação da vida social. Para mim, a doença das pessoas é em grande parte fruto de uma enfermidade cultural e sistêmica, ou seja, resulta do enfraquecimento da medicina cultural.

RR – O que é a medicina cultural?

Ramos – São os recursos simbólicos que os homens, desde tempos imemoriais, fizeram uso para curar-se, viver e obter segurança. Esses recursos simbólicos, que atuavam seja através do suporte e do apoio espiritual e emocional aos indivíduos, seja através de estratégias de intervenção diante das ameaças que se apresentavam, nos últimos tempos foram sendo colonizados e apropriados pelos interesses do capital. O grande problema do mundo de hoje é que não apenas os homens se veem como coisas, mas a própria cultura foi “polematada”, ou seja, coisificada e instrumentalizada pelo poder do capital. Agora, o homem só acredita na ciência, na medicina dita “científica” e nos remédios. Essa é a nova religião instituída pelo pharmacolonialismo.  

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