RAMOS É ENTREVISADO POR ROBERTO RODRIGUES SOBRE O
TEMA DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA (26/04/12)
RR – Você poderia esclarecer o que é
medicalização, o tema do seu livro?
Ramos – A partir da segunda metade do século XX,
intensificou-se um processo de mudança nas estratégias de controle e dominação
dos indivíduos dentro das sociedades. A medicina e a psiquiatria ampliaram o
seu campo de atuação ao redefinir os conceitos de “normal” e “anomal”, ou de
“sadio” e “patológico” e passaram a atuar em áreas que antes não eram objeto de
intervenção médica. Comportamentos, atitudes, sentimentos e emoções foram
patologizados e, consequentemente, considerados como demandando um tratamento
médico. O conceito de “medicalização” indica essa extrapolação ou invasão de
novos espaços sociais, redefinidos como sendo espaços legítimos de intervenção
médica. Como disse Foucault, estamos migrando de uma sociedade baseada em leis,
para uma sociedade baseada em normas – normas essas ditadas pelo discurso
médico-psiquiátrico.
RR – Você não vê como um avanço o uso de novas
tecnologias e medicamentos a fim de tratar os distúrbios e transtornos das
pessoas na contemporaneidade?
Ramos – Em parte vejo como um avanço, em parte –
caso caracterize um processo de medicalização da vida - como um novo
empreendimento colonialista, como uma manifestação do que eu chamo de ampliação
do “pharmacolonialismo”. Quando afirmo que algo é doentio, quando eu torno algo
patológico, automaticamente, caso eu seja um médico, me autorizo a “tratar”
esse ser doente – com ou sem o seu consentimento. É exatamente isso o que
ocorria quando eram “descobertas” novas terras por parte dos colonizadores
europeus do passado: eles achavam que os povos “descobertos” eram “selvagens”,
seres perdidos, sem Deus e vivendo na ignorância; e, consequentemente, se
atribuíam não apenas o direito mas igualmente o dever de colonizá-los,
educá-los, transformá-los naquilo que eles, os europeus, consideravam como
sendo o melhor para eles. Tudo isso eram apenas racionalizações criadas para
justificar o domínio e a exploração.
RR – Mas não se trata de duas coisas bem diferentes
- a intervenção médica e a colonizadora?
Ramos - Para mim são muito parecidas. A medicina
está cada vez mais ocupando o lugar da religião. A consulta médica está
assumindo as feições e o modo de operar dos antigos confissionários: as pessoas
vão lá para confessar os seus pecados, quer dizer, as suas “doenças” ou
“perturbações”, e, ao fazê-lo, vão precisar pagar penitência, ou seja, a
ingestão de algum medicamento para purificar-se. Para mim, os médicos da
atualidade, como os sacerdotes ou jesuítas de antigamente, atuam como os
emissários e facilitadores de um grande projeto colonialista.
RR – Você não vê como uma expressão de humanidade
ou de cuidado o fato de um médico ou psiquiatra querer ajudar quem está doente
ou com algum transtorno?
Ramos – Não necessariamente. Isso vai depender de
algumas coisas. Primeiro: se a pessoa para a qual se destina a intervenção está
de acordo com ela ou não, ou seja, se essa ação vai estar a serviço dela ou do
sistema colonialista. Em segundo lugar, é preciso avaliar a pertinência ou não
de aplicar o conceito de doença ou transtorno ao caso, pois ultimamente muitos
transtornos estão sendo inventados a torto e a direito. E terceiro, há o perigo
implícito nesse empreendimento de transformar os seres humanos em coisas.
RR – Como um paciente que é ajudado pode virar uma
coisa?
Ramos – A “doença” é vista pela medicina atual como
sendo uma algo ruim que “acontece” ao indivíduo, como uma fatalidade, como um
mal evitável – e não como a expressão do seu estilo de vida, de suas vivências,
seus desejos, ações e omissões. A doença é descontextualizada da vida da pessoa
e o médico se vê como um policial que vai usar todos os conhecimentos e o
aparato tecnológico de que dispõe para destruir esse inimigo. Além do mais, os
médicos têm sido doutrinados, em sua formação, no sentido de maximizarem a
importância da genética e minimizarem os fatores subjetivos implicados nesse
processo. Quando o paciente acredita nisso, que ele é um produto da genética e
que ele não tem nada a ver com a doença que o acomete, ele vira uma coisa. Perde
a liberdade, não se sente mais responsável por si mesmo. Além disso, o
tratamento médico vai torná-lo um cego e um surdo para a sua verdade, e vai
mantê-lo num contínuo mutismo, pois ele só vai falar de assuntos periféricos.
RR – Que tipo de assuntos?
Ramos – Ele vai ser colonizado na sua consciência e
no seu modo de ver a sua vida, passando a adotar a visão do médico e esquecendo
de sua própria verdade. A verdade do médico, que é o diagnóstico dele, vai se
sobrepor à sua verdade subjetiva. Isso o mantém no lugar de paciente, de coisa,
e não de experienciante, ou seja, de alguém que é um sujeito de sua própria
existência.
RR – Qual é então a sua proposta? As pessoas
deveriam ficar à mercê de si mesmas, abandonadas à própria sorte e “livres” dos
médicos e psiquiatras?
Ramos – Não. No meu modo de ver, as políticas de
saúde deveriam sofrer uma grande reformulação e reorientação e instituir uma
mudança nas suas práticas e tratamentos. Em primeiro lugar, seria importante
desconstruir a ideia de que aquele que sofre é um paciente e vê-lo como um
experienciante, ou seja, como alguém que é dono de sua própria vida. Em segundo
lugar, eu estimularia tratamentos mais brandos e que levassem em conta o homem
na sua dimensão corporal, mental e espiritual. Em terceiro lugar, incentivaria
iniciativas grupais, sociais e comunitárias que permitissem às pessoas
dialogar, discutir e elaborar as suas dificuldades, conflitos e problemas. A
esperança de um mundo melhor e mais saudável começaria a partir dessas
iniciativas em pequenos grupos, as quais iriam aos poucos configurando
processos mais integrados que por fim levariam a uma polisterapia, ou seja, um
novo espaço de conhecimento e transformação da vida social. Para mim, a doença
das pessoas é em grande parte fruto de uma enfermidade cultural e sistêmica, ou
seja, resulta do enfraquecimento da medicina cultural.
RR – O que é a medicina cultural?
Ramos – São os recursos simbólicos que os homens,
desde tempos imemoriais, fizeram uso para curar-se, viver e obter segurança.
Esses recursos simbólicos, que atuavam seja através do suporte e do apoio
espiritual e emocional aos indivíduos, seja através de estratégias de
intervenção diante das ameaças que se apresentavam, nos últimos tempos foram
sendo colonizados e apropriados pelos interesses do capital. O grande problema
do mundo de hoje é que não apenas os homens se veem como coisas, mas a própria
cultura foi “polematada”, ou seja, coisificada e instrumentalizada pelo poder
do capital. Agora, o homem só acredita na ciência, na medicina dita
“científica” e nos remédios. Essa é a nova religião instituída pelo
pharmacolonialismo.
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