"As
doenças se apresentam dentro de um contexto
subjetivo: os pensamentos, as emoções e as motivações
do indivíduo. Estão relacionadas ao estilo de vida"
subjetivo: os pensamentos, as emoções e as motivações
do indivíduo. Estão relacionadas ao estilo de vida"
Planeta
Jota – O que o levou a escrever o livro A Tragicomédia da
Medicalização: a Psiquiatria e a Morte do Sujeito ?
Ramos – Basicamente duas coisas: em primeiro lugar, uma contradição que ao
longo do tempo foi se tornando mais perceptível e se transformou ultimamente
numa convicção pessoal: os psicoativos não estão ao serviço do autoconhecimento
e da autotransformação das pessoas. Pelo contrário, as pessoas não medicadas
que, embora sofrendo de graves distúrbios, procuravam primeiro o tratamento
psicoterapêutico, rapidamente se curavam de seus males, enquanto que os
indivíduos medicados apresentavam uma tremenda dificuldade de evoluir
clinicamente. Em segundo lugar, notei que as pessoas que eram diagnosticadas
por algum distúrbio se sentiam como que encaixotadas, presas numa arapuca
simbólica. Esse aprisionamento mental, que chamo de “polematação”, ou seja, a
transformação do homem em mercadoria, resulta de uma autoimagem internalizada
pelo paciente de que está “possuído” por uma doença ou transtorno mental; que a
sua perturbação tem uma origem genética e que é o resultado de um desequilíbrio
químico no cérebro. Essa visão de si coisificada só contribui para agravar o
quadro clínico e criar dificuldades ao tratamento.
PJ – A que você atribui a dificuldade apresentada pelos pacientes medicados
com psicoativos?
Ramos – A primeira é de ordem psicológica. Quando o paciente está sofrendo e
não sabe o que se passa consigo, ele se sente mais aberto e propenso a
entregar-se a um tratamento que lhe permita superar o seu malestar. Por outro
lado, quando ele é diagnosticado no seu mal, essa abertura desaparece. Há uma
diferença muito grande entre o diagnóstico médico e o psiquiátrico. Se estou
febril e com uma forte dor no peito e vou a um médico, preciso saber com
urgência se contraí uma pneumonia ou tuberculose, por exemplo. O conhecimento
da causa da minha doença é de uma necessidade vital para mim, a fim de que eu
possa adotar o tratamento mais adequado para debelar o mal que me acomete. O
diagnóstico vai me permitir saber o tipo de remédio ou antibiótico que vai me
curar. Mas se eu procuro um psiquiatra sofrendo de algum malestar, a formulação
do diagnóstico antes do tratamento tem um efeito iatrogênico ou danoso sobre o
psiquismo do paciente.
PJ – Como assim?
Ramos – Quando o psiquiatra diagnostica, o diagnóstico normalmente vem
associado a uma prescrição medicamentosa. E os psicoativos, ao aliviarem os
sintomas, eliminam também a motivação que poderia levar o indivíduo à cura de
seus males. Desta forma, ao invés do remédio ajudar na cura, como ocorre na
medicina, no caso da psiquiatria atrapalha.
PJ – Não
é bom para o paciente se livrar de um sintoma que lhe causa sofrimento?
Ramos – Não necessariamente. Esse é o maior equívoco da teoria e da prática
psiquiátrica atual e, por extensão, da própria medicina: ver a doença ou o
sintoma como o mal, dissociado do seu contexto. No caso da medicina essa
descontextualização traz um certo dano, mas no caso da psiquiatria é
extremamente nefasta. A medicina vê a doença como um mal que “acontece” ao
indivíduo e que não tem nada a ver com ele. Mas, na verdade, a doença é como um
texto, uma mensagem que se apresenta à pessoa a fim de que ela a decifre e a
compreenda. As doenças se apresentam dentro de um contexto subjetivo (os
pensamentos, as emoções, as motivações do indivíduo) e estão relacionadas ao
estilo de vida da pessoa. Saber por que certas pessoas são acometidas de um
determinado tipo de doença ou porque determinados órgãos são especialmente
afetados permitirá que a mesma use estratégias mais eficazes e autosustentáveis
de lidar com as suas enfermidades. No caso da psiquiatria a situação é bem
pior: os psiquiatras, a partir dos anos 80 do século passado, influenciados
pela indústria farmacêutica e pela neurociência, deixaram de ter uma visão
psicodinâmica dos conflitos das pessoas, ou seja, passaram a ver o sintoma como
o problema, quando, na verdade, o sintoma é uma tentativa precária de
conciliação ou resolução de um conflito. O sintoma é justamente a porta que
permite ao sujeito adentrar no seu conflito existencial. Eliminar essa porta é
condenar o paciente à cegueira e à desconexão consigo mesmo.
"O
paciente é um cego que vai procurar
um surdo (o psiquiatra) para continuar cego. Ele não vai se
abrir, só quer um remédio. É a comédia da existência"
um surdo (o psiquiatra) para continuar cego. Ele não vai se
abrir, só quer um remédio. É a comédia da existência"
PJ – Você
acha, então, que os psiquiatras não deveriam diagnosticar os seus pacientes?
Ramos – Tem muita coisa errada nessa história. E o primeiro erro é ver aquele
que sofre como um “paciente”, e não como um “experienciante”. Ver o outro como
paciente é colocá-lo num papel de passividade, é “polematá-lo”. O psiquiatria
deveria ver aquele que sofre como um “experienciante”, ou seja, como alguém
que, sofrendo de um malestar, pode vir, através dele, ampliar o seu
autoconhecimento e transformar-se. O segundo erro diz respeito à postura que o
psiquiatra vai adotar diante daquele que o procura. Ele vai estar a serviço de
quem? Vai se colocar a serviço do indivíduo, enquanto sujeito, ou da família ou
da sociedade que está incomodada com algum aspecto de seu comportamento? Se o
psiquiatra vai se colocar a serviço do indivíduo, deveria inevitavelmente adotar
a postura socrática do não-saber, que aliás, é não apenas a mais sábia como a
mais pertinente ao caso. É a mais sábia, pois o psiquiatra de fato não sabe as
razões pelas quais a pessoa está sofrendo. E para descobrir isso, em primeiro
lugar, precisa reconhecer o óbvio: que ele ignora o que está acontecendo com
aquele que o procura. E é a mais pertinente, pois quando reconhece não saber o
que se passa com o outro, abre o espaço para que o outro fale a respeito do seu
malestar, atitude que, por si só, terá efeitos positivos no seu quadro clínico.
No momento em que o psiquiatra diagnostica, ele interrompe o diálogo e dá o seu
veredito: condena o sofredor a ser um doente ou o portador de um determinado
transtorno. E nesse processo de condenação a pena a que ele vai estar sujeito é
o consumo de algum psicoativo, frequentemente para toda a vida. Essa postura é
lastimável. Ela significa a morte do sujeito.
PJ – De que sujeito você está falando?
Ramos - O experienciante, a pessoa que procura viver a sua vida consoante os
seus próprios valores, ou seja, a pessoa quee age, pensa, sente e procura
realizar os seus desejos e projetos. Esse sujeito principia a morrer no momento
em que ele começa a ser classificado e é sepultado quando recebe um
diagnóstico.
PJ – O que você propõe, ao que parece, confronta a prática médica. Um
psiquiatra não estuda e se forma para bem diagnosticar?
Ramos – No caso do psiquiatra, se ele pensa que ao diagnosticar
está exercendo um saber em benefício do experienciante, afirmo que na verdade o
que está fazendo é revelar a sua ignorância. Se a psiquiatria deseja
apresentar-se como uma ciência, ela deve fundar-se em algum critério de
verdade. Aqui estão em jogo dois critérios de verdade: o primeiro, que é a
adequação do diagnóstico aos sinais e sintomas do paciente; e o segundo, é o
conceito de verdade como aletheia, como desvelamento, ou revelação por parte do
experienciante do que se passa consigo. A formulação do diagnóstico, o conceito
de verdade como adequação ao sintoma, só poderia adquirir alguma base e
sustentação se fosse fundado na verdade do sujeito. Mas o que ocorre, na
maioria das vezes, é justamente o contrário: o diagnóstico vem primeiro e aí a
verdade do sujeito é suprimida. Essa situação poderia ser descrita
metaforicamente como um diálogo de cegos, surdos e mudos: o paciente é um cego
que vai procurar um surdo (o psiquiatra que não tem ouvidos para a sua verdade)
para continuar cego. E se age como paciente mesmo, ele vai evitar se abrir
muito para o psiquiatra. O que ele quer mesmo é um remédio para aliviar os seus
sintomas. Essa é a comédia da existência.
PJ - Então isso explica o título do seu livro?
Ramos – Sim. A tragédia da existência é constatar que os homens, em
muitos momentos da história, foram tratados como coisas, foram “polematados”.
Isso aconteceu em todos os regimes onde as pessoas foram escravizadas. Os
senhores antigos, ao vencerem uma guerra, transformavam os vencidos muitas
vezes em escravos e se julgavam no direito de vida e morte sobre eles. Se o
senhor permitisse ao vencido continuar vivo, o preço desta concessão seria a
sua liberdade, ele virar o seu escravo. Há muita semelhança metafórica entre a
situação da escravidão e a daqueles que buscam um tratamento psiquiátrico: o
preço dele voltar a ser sadio e “normal”, será a supressão de si mesmo enquanto
sujeito. Mas a comédia está no fato de que muitas pessoas hoje em dia, estão
adotando um estilo de vida onde vivem perpetuamente fugindo de si mesmas. Essa
fuga contínua produz muita muitas vezes angústia e ansiedade. E como elas temem
o contato consigo mesmas – o qual poderia por um término a essa fuga incessante
-, preferem atribuir a causa do seu malestar a algum desequilíbrio químico em
seu cérebro, e não a suas escolhas ou omissões. Se veem como coisas e acreditam
que a solução de seus problemas seria a ingestão de um psicoativo.
"É
preciso distinguir entre a psiquiatria e a “encefalatria”.
O psiquiatra vê o homem como ser simbólico e dotado de linguagem. O encefalatra propõe tratar a mente através do cérebro"
O psiquiatra vê o homem como ser simbólico e dotado de linguagem. O encefalatra propõe tratar a mente através do cérebro"
PJ – Mas
todas as descobertas feitas pelos neurocientistas, nos últimos anos, não são a
confirmação científica dessa tese?
Ramos – Está havendo uma grande confusão e distorção no modo
correto de encarar a relação entre o cérebro e a mente. Para explicar a
importância que atribuo à bioquímica do cérebro, vou recorrer a uma analogia.
Imagine duas situações. Na primeira, um assaltante rouba um carro e foge em
alta velocidade colocando em risco a vida das pessoas, tendo a polícia no seu
encalço. Na segunda, um motorista, ao saber que sua mãe estava sendo vítima de
um assalto, sai em disparada no seu veículo tentando chegar ao local onde ela
se encontra a fim de protegê-la.
Consideremos a primeira situação. Se eu perguntasse: o que faz os carros
trafegarem mais depressa ou devagar nas estradas da vida? Na opinião dos
psiquiatras, médicos e neurocientistas da atualidade, a resposta seria: é a
gasolina ou o bom funcionamento do motor. O motivo principal pelo qual o carro
conduzido pelo assaltante está em alta velocidade seria o excesso de gasolina
que está alimentando o motor, e não a vontade do assaltante em escapar da
polícia que o persegue. Isto vem em segundo plano. Na visão mecanicista vigente
na atualidade, o que conduz os carros não é a vontade dos condutores, mas a
presença ou ausência da gasolina no motor ou o seu bom funcionamento.
Passemos agora para a segunda situação. E acrescentemos que, apesar da vontade
do motorista em socorrer a sua mãe, ele não consegue chegar ao local
pretendido. E o motivo disso residiu na falta de gasolina no seu veículo. O
carro não chegou ao seu destino não porque o motorista assim o quis, mas em
função de uma falha mecânica. Esses casos de vez em quando acontecem, seja por
descuido do motorista, por falta de manutenção do veículo ou pela presença de
algum defeito no carro.
Se tomarmos o condutor como representando a mente e o motor do carro como sendo
o cérebro, à pergunta - por que o carro trafega em excesso de velocidade?,
dizer que é pelo volume de gasolina que entra no motor não seria propriamente
uma inverdade, mas uma impropriedade, uma explicação insuficiente. A gasolina
está sendo direcionada ao motor porque o motorista está acelerando. E por que
ele está acelerando? Por que não quer ser detido pela polícia. Para se entender
a realidade, é preciso ir mais além de uma visão mecanicista que secciona e
isola aspectos da realidade que não estão separados.
No segundo exemplo, por sua vez, a explicação mecanicista seria pertinente: o
carro para não porque o condutor assim o deseja, mas porque falta gasolina ou
apresenta alguma falha independentemente de sua vontade. Na visão mecanicista
dos cientistas da atualidade o motor tem mais importância do que o condutor do
veículo. Mais adequado seria dizer: salvo algumas exceções, o que ocorre com os
carros depende eminentemente da vontade dos seus condutores. É assim que eu
penso.
PJ - Na sua opinião, como sugere o seu livro, a psiquiatria está matando o
sujeito, o ser.
Ramos – Não gostaria que vissem o meu livro propriamente como uma
crítica à psiquiatria. O livro é inspirado em dois grandes psiquiatras e é
dedicado à Dra. Nise da Silveira. É preciso fazer uma distinção entre a
psiquiatria e a “encefalatria”. O psiquiatra é o profissional que trata o
experienciante como um sujeito, através da escuta e diálogos sinceros, vendo o
homem como um ser simbólico e dotado de linguagem. O encefalatra é o
profissional que propõe o tratamento da mente através do cérebro. O livro é na
verdade uma defesa da psiquiatria autêntica contra a encefalatria, pois esta
última toma o homem como um mero animal, um ser bioquímico. As explicações
bioquímicas, em alguns casos, podem ser as mais adequadas, mas na maioria das
vezes a elucidação do malestar das pessoas encontra-se na mente e não no cérebro.
PJ - A Tragicomédia é o seu primeiro livro?
Ramos – Não. Já escrevi cinco livros antes. O primeiro, um livro de
fábulas – A Colina e o Abismo, foi escrito em coautoria com José
Paulo de Melo Cabral. O segundo – A Magia na Aldeia Global, aborda
os comerciais televisivos a partir de uma perspectiva antropológica. O terceiro
– De Narciso a Édipo: a criação do artista, contem a minha tese de
doutorado em psicologia clínica. E o último – A terapia da excelência:
uma introdução ao método da estética existencial, apresenta uma
sistematização preliminar do meu método terapêutico. Este livro publicado agora
pelo Sapiens é o resultado das observações a partir de minha prática como
terapeuta.
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